segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Biolsonaro também é uma ideia

Há alguns meses, operários escavavam um terreno para a construção de um aterro sanitário em Tultepec, na região metropolitana da Cidade do México, quando se depararam com centenas de ossos gigantescos. Na semana passada arqueólogos anunciaram do que se tratava: fósseis de 14 mamutes, que teriam sido perseguidos há 15 mil anos por humanos armados de lanças até caírem em grandes buracos cavados na terra.

Yuval Noah Harari, em “Sapiens: uma breve história da humanidade” destaca que em algum momento entre 70 mil e 30 mil anos atrás, nossos antepassados teriam vivenciado mutações genéticas acidentais nas conexões internas de nosso cérebro. Essas alterações nos legaram novas formas de pensar e comunicar, com ganhos tão expressivos para nossa espécie que o período ficou conhecido como Revolução Cognitiva.

A estratégia dos homo sapiens de Tultepec de cavar imensos buracos e atacar os mamutes até que eles caíssem na armadilha para serem mais facilmente abatidos - gerando estoques de proteína, carboidrato e gordura para abastecer a tribo por muitas semanas - seriam fruto do desenvolvimento de um sistema nervoso muito mais complexo, capaz de fazer conexões, antever o futuro e se comunicar com seus semelhantes.

Harari cita dois fatores prosaicos pelos quais o homo sapiens se tornou a espécie animal mais bem-sucedida em dominar o Planeta Terra: a fofoca e a capacidade de inventar histórias. De um lado, a deliciosa atividade de falar bem (e mal!) de nossos parentes, vizinhos e colegas estreita laços de afinidade e confiança, galvanizando alianças e coalizões. De outro, a incrível criatividade dos humanos de buscar explicações para nossos medos e dúvidas no sobrenatural e em narrativas heroicas estão na origem de religiões e nações, cujos ideais servem de amálgama para vastas coletividades.


Dando um salto de milênios, mito e fofoca (essa última rebatizada de fake news) também estão na base na ascensão de Bolsonaro ao poder. O ex-deputado do baixo clero conseguiu um número crescente de apoiadores apelando para o combate a um inimigo comum (o petismo e a velha política), o patriotismo e a religião - não é à toa que o seu slogan é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esses valores são propagados em larga escala por meio do uso habilidoso das redes sociais (a mais eficiente forma de linguagem e comunicação dos nossos tempos), na construção de narrativas heroicas para si e na busca de destruição da reputação dos seus adversários.

Na semana passada, com o lançamento de seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil, o presidente deu mais um passo na institucionalização do bolsonarismo. Com o prazo curto para ser registrado no TSE a tempo de disputar as eleições municipais do ano que vem, o novo partido promete mobilizar as redes sociais - criado há menos de uma semana, seus perfis já têm 250 mil seguidores no Facebook e quase 150 mil no Twitter - e várias entidades religiosas para coletar as assinaturas necessárias para a formalização do partido. Não será surpresa se conseguirem.

Depois que Jair Bolsonaro se transferiu para o PSL, o partido recebeu 105 mil novos filiados. Só para se ter uma ideia do poder do presidente em mobilizar um exército de apoiadores, desde o início de 2018, com uma campanha eleitoral e todo o barulho em torno do “Lula Livre”, o PT acrescentou apenas 17.719 novos membros - seis vezes menos que o antigo partido de Bolsonaro.

No seu famoso discurso na porta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC antes de ser preso, Lula proclamou: “Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia; uma ideia misturada com a ideia de vocês.”

É inegável que o lulismo representa uma força importante na política brasileira, mas o envolvimento do PT nos escândalos de corrupção do mensalão e da Lava-Jato, bem como as consequências econômicas desastrosas das medidas adotadas nos governos Lula II e Dilma I reduziram sua influência eleitoral para as parcelas mais pobres do eleitorado, sobretudo no Norte e Nordeste - movimento captado de maneira insuspeita por André Singer, porta-voz do próprio Lula no primeiro mandato, em “Os Sentidos do Lulismo” (2012) e “O Lulismo em Crise” (2018).

Para se tornar viável na eleição de 2022, Lula e o PT precisarão bem mais do que os seus autoproclamados “tesão de 20, energia de 30 e experiência de 70” anos. Hoje em dia quem melhor representa uma “ideia” no imaginário brasileiro é Bolsonaro. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, na periferia de São Paulo em 2017 revelou que, graças ao avanço da influência das igrejas neopentecostais e da valorização do consumo e do empreendedorismo popular, um novo caldo cultural se formou em áreas que antes eram monopolizados pelo PT. “A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionados à atuação do Estado” permeiam essa nova visão do mundo da classe trabalhadora, conclui o documento.

Basta ler o manifesto de lançamento do Aliança pelo Brasil para constatar como o bolsonarismo se utiliza desses valores para construir a sua plataforma política: “Estamos formando uma nova Aliança pelo Brasil. A Aliança por um país da liberdade, da prosperidade, da educação, da ética, da meritocracia, da transparência, do respeito às leis, da segurança e da igualdade para homens e mulheres no trabalho, na política e em todos os campos do desenvolvimento social.”

Nem Lula, nem qualquer político de centro, conseguiu até agora captar os ecos dos protestos de 2013 e para eles construir uma narrativa tão convincente quanto Bolsonaro. É óbvio que até 2022 seu governo precisa entregar resultados - e não está nem um pouco clara a sua capacidade de oferecer o crescimento econômico e os melhores serviços públicos que essa massa de eleitores demanda. Mas ninguém tem combinado tão bem mito e fofoca nas redes sociais para tocar os corações e mentes do segmento mais dinâmico dos homo sapiens brasileiros.
Bruno Carazza

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