Yuval Noah Harari, em “Sapiens: uma breve história da humanidade” destaca que em algum momento entre 70 mil e 30 mil anos atrás, nossos antepassados teriam vivenciado mutações genéticas acidentais nas conexões internas de nosso cérebro. Essas alterações nos legaram novas formas de pensar e comunicar, com ganhos tão expressivos para nossa espécie que o período ficou conhecido como Revolução Cognitiva.
A estratégia dos homo sapiens de Tultepec de cavar imensos buracos e atacar os mamutes até que eles caíssem na armadilha para serem mais facilmente abatidos - gerando estoques de proteína, carboidrato e gordura para abastecer a tribo por muitas semanas - seriam fruto do desenvolvimento de um sistema nervoso muito mais complexo, capaz de fazer conexões, antever o futuro e se comunicar com seus semelhantes.
Harari cita dois fatores prosaicos pelos quais o homo sapiens se tornou a espécie animal mais bem-sucedida em dominar o Planeta Terra: a fofoca e a capacidade de inventar histórias. De um lado, a deliciosa atividade de falar bem (e mal!) de nossos parentes, vizinhos e colegas estreita laços de afinidade e confiança, galvanizando alianças e coalizões. De outro, a incrível criatividade dos humanos de buscar explicações para nossos medos e dúvidas no sobrenatural e em narrativas heroicas estão na origem de religiões e nações, cujos ideais servem de amálgama para vastas coletividades.
Dando um salto de milênios, mito e fofoca (essa última rebatizada de fake news) também estão na base na ascensão de Bolsonaro ao poder. O ex-deputado do baixo clero conseguiu um número crescente de apoiadores apelando para o combate a um inimigo comum (o petismo e a velha política), o patriotismo e a religião - não é à toa que o seu slogan é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esses valores são propagados em larga escala por meio do uso habilidoso das redes sociais (a mais eficiente forma de linguagem e comunicação dos nossos tempos), na construção de narrativas heroicas para si e na busca de destruição da reputação dos seus adversários.
Na semana passada, com o lançamento de seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil, o presidente deu mais um passo na institucionalização do bolsonarismo. Com o prazo curto para ser registrado no TSE a tempo de disputar as eleições municipais do ano que vem, o novo partido promete mobilizar as redes sociais - criado há menos de uma semana, seus perfis já têm 250 mil seguidores no Facebook e quase 150 mil no Twitter - e várias entidades religiosas para coletar as assinaturas necessárias para a formalização do partido. Não será surpresa se conseguirem.
Depois que Jair Bolsonaro se transferiu para o PSL, o partido recebeu 105 mil novos filiados. Só para se ter uma ideia do poder do presidente em mobilizar um exército de apoiadores, desde o início de 2018, com uma campanha eleitoral e todo o barulho em torno do “Lula Livre”, o PT acrescentou apenas 17.719 novos membros - seis vezes menos que o antigo partido de Bolsonaro.
No seu famoso discurso na porta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC antes de ser preso, Lula proclamou: “Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia; uma ideia misturada com a ideia de vocês.”
É inegável que o lulismo representa uma força importante na política brasileira, mas o envolvimento do PT nos escândalos de corrupção do mensalão e da Lava-Jato, bem como as consequências econômicas desastrosas das medidas adotadas nos governos Lula II e Dilma I reduziram sua influência eleitoral para as parcelas mais pobres do eleitorado, sobretudo no Norte e Nordeste - movimento captado de maneira insuspeita por André Singer, porta-voz do próprio Lula no primeiro mandato, em “Os Sentidos do Lulismo” (2012) e “O Lulismo em Crise” (2018).
Para se tornar viável na eleição de 2022, Lula e o PT precisarão bem mais do que os seus autoproclamados “tesão de 20, energia de 30 e experiência de 70” anos. Hoje em dia quem melhor representa uma “ideia” no imaginário brasileiro é Bolsonaro. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, na periferia de São Paulo em 2017 revelou que, graças ao avanço da influência das igrejas neopentecostais e da valorização do consumo e do empreendedorismo popular, um novo caldo cultural se formou em áreas que antes eram monopolizados pelo PT. “A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionados à atuação do Estado” permeiam essa nova visão do mundo da classe trabalhadora, conclui o documento.
Basta ler o manifesto de lançamento do Aliança pelo Brasil para constatar como o bolsonarismo se utiliza desses valores para construir a sua plataforma política: “Estamos formando uma nova Aliança pelo Brasil. A Aliança por um país da liberdade, da prosperidade, da educação, da ética, da meritocracia, da transparência, do respeito às leis, da segurança e da igualdade para homens e mulheres no trabalho, na política e em todos os campos do desenvolvimento social.”
Nem Lula, nem qualquer político de centro, conseguiu até agora captar os ecos dos protestos de 2013 e para eles construir uma narrativa tão convincente quanto Bolsonaro. É óbvio que até 2022 seu governo precisa entregar resultados - e não está nem um pouco clara a sua capacidade de oferecer o crescimento econômico e os melhores serviços públicos que essa massa de eleitores demanda. Mas ninguém tem combinado tão bem mito e fofoca nas redes sociais para tocar os corações e mentes do segmento mais dinâmico dos homo sapiens brasileiros.Bruno Carazza
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