sexta-feira, 12 de abril de 2019

Os 80 tiros em nossa consciência

Também adoraria falar do outono, mas as folhas da estação estão vermelhas de sangue. E com manchas de sangue estavam as bandeiras do Brasil no enterro do músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado por soldados do Exército quando levava a família a um chá de bebê dominical. O Comando Militar do Leste primeiro disse que foi resposta a uma “injusta agressão” de “tiros de criminosos”. Depois, a versão mudou. Foi “um engano” porque Evaldo estava num carro igual ao de assaltantes.

Desculpe, senhor Exército, a desculpa não cola. Em nenhum país civilizado militares fuzilam um carro sem sofrer um tiro, sem checagem da placa ou abordagem prévia. Modelo e cor de carro não podem levar a uma execução. Nem se fossem assaltantes. Em guerras convencionais, também seria execução. E só acontece num país desgovernado, que perdeu o rumo na segurança pública. Que faz do enfrentamento com violência máxima seu mantra para “reduzir a criminalidade”

Cadê os tuítes do presidente da República e seus filhos? O general vice-presidente e os ministros também têm o dever de se pronunciar sem covardia ou mimimi sobre esse crime hediondo e a farsa montada pelos soldados. Eles foram afastados, presos. Não tenho ideia do desfecho do julgamento, mas nosso histórico de impunidade é desanimador.

Esse homicídio transcende o Rio de Janeiro. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, chamou o fuzilamento de “acidente lamentável” e o ministro da Justiça, Sergio Moro, de “incidente trágico”. Um fato isolado. Não. Não é dissociado de uma política anticrime que manda acertar a cabecinha. O governador do Rio, Wilson Witzel, após dias se recusando a emitir “juízo de valor”, cedeu às pressões e chamou de “erro grosseiro”. Incidente? Acidente? Erro?

Pensei sobre o que conversaria a família no momento do fuzilamento. Que música escutariam? O que programavam depois do chá de bebê? O pai tocava cavaquinho no grupo Remelexo da Cor, era segurança de creche e querido. O casal estava junto havia 27 anos. “Perdi meu melhor amigo”, gritava a viúva, Luciana Nogueira. “Saí do carro, pedindo que parassem. Gente, era o quartel! Eles continuaram a atirar. Ficaram de deboche.” Admiro Luciana por sua coragem ao sair do carro e implorar aos soldados protegidos por capacete, num destemor vindo da certeza da inocência e do amor à família. Escuto sua dor de soluços roucos.

Enquanto as autoridades não entenderem que são também responsáveis por gatilhos nervosos que matam inocentes, estaremos perdidos. Moro disse que “lamentavelmente esses fatos podem acontecer”. Não podem não, Moro. É bom explicar direitinho seu pacote anticrime que permite matar em situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Os soldados podem alegar tudo isso. E aí?

Não se permitam esquecer do Evaldo, da viúva e de seu filho de 7 anos que viu o pai morrer. Ninguém pode ser vítima da boçalidade de quem porta um fuzil em nome do Estado. Militares não nasceram para patrulhar as ruas. Bolsonaro não nasceu para ser presidente e, sim, militar. Foi o que ele disse. Numa semana assim, eu sou tomada de escusável medo, surpresa e violenta emoção. A sorte é que, por princípio, nunca terei uma arma. Nem vocação para matar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário