sexta-feira, 13 de junho de 2025

A conversa da bolha

Vivo numa bolha. Se vos parece chocante que o diga, é porque não se apercebem de que também estão dentro de uma. Sempre estiveram. Quer andem de jato privado ou no autocarro da Carris, quer comam nos restaurantes Michelin ou no café do bairro, quer vivam num prédio na periferia ou num bairro de barracas. A vossa experiência será sempre limitada pelas paredes dos lugares que habitam. De cada vez que disserem “eu tenho um amigo que”, saibam que o fazem por esse contacto direto com o que vos rodeia. É como se esticassem um braço e apenas aquilo em que tocam fosse real. Ora, essa ideia faz-vos sentido? Faz-vos sentido que só seja possível falar sobre aquilo que experienciámos diretamente?

Eu não estou em Gaza e não faço ideia do que será ver os meus filhos morrer à fome. Não devo falar sobre o que não sei? Eu não vivo numa habitação precária, sem luz nem aquecimento. Estou impossibilitada de falar sobre o problema? Ou talvez não funcione assim. Talvez só não possa falar quando o que eu digo assenta em dados estatísticos, relatórios, informações oficiais. Porque só a bolha olha para números. Devo, então, fixar-me no particular.

Se num dia passar numa rua e vir uma senhora a ser assaltada, por dois gordos carecas, devo assumir que aquela rua é um lugar perigoso – mesmo que seja a primeira vez que ali acontece um assalto – e que os gordos carecas são perigosos criminosos em potência. Ah! Também não funciona assim? Estou a fazer uma caricatura, porque sou uma privilegiada, que não sabe o que é viver em ruas onde os gordos carecas são uma ameaça constante. E um dia destes os gordos carecas vão ser mais do que nós, porque eles têm imensos filhos. E nem sequer gostam de trabalhar. Vivem todos à conta de subsídios. Não há subsídios para gordos carecas? Ah, isso não sei, mas uma vez conheci um gordo careca, que passava o dia no café sem fazer nenhum. De certeza que era porque recebia um subsídio por ser gordo careca.


Estão a ver onde nos leva este exercício? Mas, mais importante do que isso, estão a ver qual é o objetivo da conversa da bolha? A conversa da bolha é um mecanismo de desqualificação. A “bolha” serve para desacreditar o jornalismo – uma prática que obedece a regras e métodos –, para calar quem tem um pensamento diferente e, sobretudo, para erodir a confiança.

Numa sociedade em que vinga este mecanismo de desqualificação, a confiança desaparece. Deixamos de acreditar nas notícias, porque elas são escritas por jornalistas que vivem na bolha. Deixamos de acreditar em relatórios e estatísticas porque eles não confirmam aquilo que vemos na nossa bolha. E abrimos espaço a que se aniquile quem pensa de maneira diferente, queimando-o na fogueira dos inquisidores que nos salvam das bolhas.

Uma sociedade sem confiança regressa às trevas do mais primitivo individualismo. O pensamento crítico passa a ser perseguido. Ninguém pode questionar os que estão fora da bolha, porque a sua verdade passa a ser lei. Mas, ao mesmo tempo, ninguém acredita em nada, porque nos dizem que estamos a ser enganados pelo jornalixo da bolha.

A quem é que isso interessa? A quem é que interessa esta desenfreada caça à bolha, feita por gente de dedo em riste, pronta a apontar contra jornalistas, universidades e relatórios? Não é difícil ter a resposta. Interessa aos que não querem ser submetidos ao escrutínio do jornalismo e, por isso, o desclassificam. Interessa aos que querem semear o caos da descrença para oferecer a ordem da obediência e da crença cega. Interessa aos que não gostam dos resultados da ciência e do estudo e querem manter uma ignorância que lhes protege os interesses. Interessa aos que inflamam os ódios alimentados com a desigualdade que lhes serve tão bem e que nunca irão combater. Interessa aos que, no fundo, têm medo.

As experiências individuais são importantes. Mas guiarmo-nos por elas é como andar de olhos colados ao chão e não perceber que, acima da nossa cabeça, existe o céu.

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