Eu não estou em Gaza e não faço ideia do que será ver os meus filhos morrer à fome. Não devo falar sobre o que não sei? Eu não vivo numa habitação precária, sem luz nem aquecimento. Estou impossibilitada de falar sobre o problema? Ou talvez não funcione assim. Talvez só não possa falar quando o que eu digo assenta em dados estatísticos, relatórios, informações oficiais. Porque só a bolha olha para números. Devo, então, fixar-me no particular.
Se num dia passar numa rua e vir uma senhora a ser assaltada, por dois gordos carecas, devo assumir que aquela rua é um lugar perigoso – mesmo que seja a primeira vez que ali acontece um assalto – e que os gordos carecas são perigosos criminosos em potência. Ah! Também não funciona assim? Estou a fazer uma caricatura, porque sou uma privilegiada, que não sabe o que é viver em ruas onde os gordos carecas são uma ameaça constante. E um dia destes os gordos carecas vão ser mais do que nós, porque eles têm imensos filhos. E nem sequer gostam de trabalhar. Vivem todos à conta de subsídios. Não há subsídios para gordos carecas? Ah, isso não sei, mas uma vez conheci um gordo careca, que passava o dia no café sem fazer nenhum. De certeza que era porque recebia um subsídio por ser gordo careca.
Estão a ver onde nos leva este exercício? Mas, mais importante do que isso, estão a ver qual é o objetivo da conversa da bolha? A conversa da bolha é um mecanismo de desqualificação. A “bolha” serve para desacreditar o jornalismo – uma prática que obedece a regras e métodos –, para calar quem tem um pensamento diferente e, sobretudo, para erodir a confiança.
Numa sociedade em que vinga este mecanismo de desqualificação, a confiança desaparece. Deixamos de acreditar nas notícias, porque elas são escritas por jornalistas que vivem na bolha. Deixamos de acreditar em relatórios e estatísticas porque eles não confirmam aquilo que vemos na nossa bolha. E abrimos espaço a que se aniquile quem pensa de maneira diferente, queimando-o na fogueira dos inquisidores que nos salvam das bolhas.
Uma sociedade sem confiança regressa às trevas do mais primitivo individualismo. O pensamento crítico passa a ser perseguido. Ninguém pode questionar os que estão fora da bolha, porque a sua verdade passa a ser lei. Mas, ao mesmo tempo, ninguém acredita em nada, porque nos dizem que estamos a ser enganados pelo jornalixo da bolha.
A quem é que isso interessa? A quem é que interessa esta desenfreada caça à bolha, feita por gente de dedo em riste, pronta a apontar contra jornalistas, universidades e relatórios? Não é difícil ter a resposta. Interessa aos que não querem ser submetidos ao escrutínio do jornalismo e, por isso, o desclassificam. Interessa aos que querem semear o caos da descrença para oferecer a ordem da obediência e da crença cega. Interessa aos que não gostam dos resultados da ciência e do estudo e querem manter uma ignorância que lhes protege os interesses. Interessa aos que inflamam os ódios alimentados com a desigualdade que lhes serve tão bem e que nunca irão combater. Interessa aos que, no fundo, têm medo.
As experiências individuais são importantes. Mas guiarmo-nos por elas é como andar de olhos colados ao chão e não perceber que, acima da nossa cabeça, existe o céu.

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