terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bolsonaro inventa o 'desacato da autoridade'

O Prêmio Esso deste ano deveria ser entregue ao grupo de repórteres que toda manhã se junta à porta do Alvorada e espera atrás de grades que o presidente da República cumpra o protocolar desjejum de desaforos, caras enfezadas, perdigotos, dedo em riste e ameaça contra eles, suas empresas e o futuro do jornalismo. Todo dia, tudo sempre igual. Os repórteres matutinos do Alvorada comem o pão que o diabo amassou.

Sua excelência borra a manteiga de ódio na torrada das desconfianças e, quando não ofende os profissionais, joga café rancoroso na cara de algum novo inimigo que a noite mal dormida lhe revelou. Sua santidade, o Papa, não perde por esperar. Os jornalistas nada comentam. Nem o excesso de bromato, o leite derramado na toalha da civilização ou o breakfast servido em pé. Seguem os rigores da profissão. Perguntam. Anotam. Publicam.

O americano Hunter Thompson, um dos inventores do jornalismo gonzo, que incentivava o repórter a se intrometer na matéria, tinha uma tática peculiar de esquentar as pautas. Diante de uma entrevista meia boca, que levaria o leitor ao sono imediato, Thompson, sempre com alguma droga na cuca, partia para o desacato. Mandava um esculacho no quengo da vítima. O entrevistado reagia, dizia um palavrão, fazia-se o escarcéu - e, pronto, Hunter Thompson tinha uma gonzo-matéria.

Viver no Brasil ficou assustador. A floresta queima, os radares saíram das estradas e na semana passada o presidente relinchou orgulhoso, misto de vaqueiro e jegue, na live da rede social. Os jornalistas não reclamam. Basta abrir o microfone e a matéria, como um café solúvel, se faz por si própria. Antes, após alguma pergunta mais contundente, eram processados por "desacato à autoridade". Bolsonaro xinga, humilha, vira as costas. Inventou o "desacato da autoridade".

Por falar em chifradas, ponha-se nesta arena o americano Ernest Hemingway, que tinha como sonho ver todas as touradas e não precisar escrever uma linha sobre elas. O jornalista Joel Silveira encontrou-o num bar de Paris. Sabia que o escritor não estava para entrevista, mas seguiu o instinto de repórter. Joel tinha a esperança de levar pelo menos um soco no meio dos cornos e ganhar o lead. Perguntou ao autor de "Paris é uma festa" se toparia um safari entre os touros da ilha de Marajó. Hemingway sequer bufou. Jogou na mesa o dinheiro do martini e, rápido, picou a mula. Tudo com discrição forçadamente exagerada para não deixar uma linha sequer para a matéria do brasileiro.

Os jornalistas acampados na porta do Alvorada não precisam provocar. Além dos bons princípios da profissão, acrescentaram às qualificações de cada um o exercício quase budista de controlar os instintos primitivos. Respiram fundo, tampam o nariz e a cada espanto que ouvem deixam de gritar de volta que o rei não só está nu, mas doido varrido. Por isso se faz meritório o Prêmio Esso a esses pacientes repórteres nas grades do Alvorada. Eles contam até dez, não topam o chamamento diário à briga. Levam os desaforos para a redação e, como é da espécie, simplesmente publicam. Deixam que o touro presidencial faça o trabalho inédito de se espetar ele próprio com as bandeirolas do ridículo.

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