Brasília seria um símbolo forte disso tudo. Já em 1916, o sociólogo norte-americano Robert Park afirmava que cidade era algo mais que "um amontoado de homens, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde e telefone. A cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes, tradições e sentimentos" (em "A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano").
Nova capital, novo urbanismo, novo estado de espírito, eis Brasília. Há, entretanto, uma diferença entre urbanismo e urbanidade: o primeiro é o planejamento técnico e metódico de uma cidade, enquanto urbanidade é a criação contínua e espontânea dos habitantes sobre o status quo urbano. É o espírito contrário à depredação de equipamentos coletivos, à violência do tráfego e ao domínio territorial pela criminalidade.
Exceto o 8 de janeiro, Brasília não conhece o estado de pré-barbárie que tem caracterizado as megalópoles brasileiras. Mas sua urbanidade acontece de cima para baixo, pela presença acachapante de todo o aparato de governo e pela contenção habitacional. Com ressalva das cidades-satélites, os brasilienses atestam níveis razoáveis de vida urbana.
Ao olhar externo, entretanto, Brasília é uma urbe desvitalizada, isto é, que não parece ser vivida, como se cada qual estivesse cercado por um meio neutro, exterior ao sentido imediato, sem investimento afetivo. É o etos do seu modo de espacialização, cujo espaço-tempo sugere uma "República de Bruzundangas" (Lima Barreto) burocrática, hipercentralizadora, chupa-cabra do trabalho vivo nacional. Um biorritmo encapsulado: a capital é mais "federal" que do Brasil.
Certa vez, numa avaliação casual, disse Ulysses Guimarães que "o próximo Congresso a ser eleito será certamente pior do que o anterior". Talvez já intuísse o elo entre a ausência de representatividade do povo nos aparelhos de Estado e a inadequação dos parlamentares, cada vez mais destituídos de cosmopolitismo cívico. A frase se revelaria profética quanto ao estado presente da Câmara, antro do mais deslavado fisiologismo e caciquismo político.
Socialização e urbanismo fazem par. A geometria poética de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa abria-se a inovações institucionais, compatíveis com o futuro desenhado. É quando se interligam tempo e espaço. Mas o tempo seguinte, de desastrosa ditadura e degradação civil, desligou-se da criação, que permaneceu como bela forma vazia. A futurística marca espaço-temporal do Estado-Nação, sonhada pela burguesia desenvolvimentista com o nome de Brasília, é hoje resíduo ideológico de um espírito inacessível à esterilidade mental dos legisladores. Seus palácios, alvos depredatórios de golpistas palacianos e turbas ensandecidas.
Muniz Sodré

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