O deserto é um lugar ingrato para visionários. T. E. Lawrence percebeu isso tarde, mas Hollywood tratou de lhe dar uma eternidade dourada. Lawrence da Arábia (1962) é um daqueles filmes que envelhecem melhor do que as histórias que os inspiraram. Peter O’Toole brilha, as dunas cintilam e a epopeia parece quase espiritual.
Mas o verdadeiro Lawrence não era propriamente um poeta perdido na areia: era também um homem de gabinete, obcecado por mapas e fronteiras. O Império Britânico precisava de intérpretes e mediadores. Ele quis ser ambos. Falava árabe, mas pensava como um europeu do início do século XX, convicto de que podia corrigir um continente inteiro com boa vontade e engenharia.
Nos seus diários – ou melhor, em Os Sete Pilares da Sabedoria – há menos romantismo do que pragmatismo. Lawrence via o Médio Oriente como um corpo adormecido que precisava de um choque externo. E acreditava que esse choque seria judaico. Que o sionismo, recém-nascido, traria modernidade ao deserto e produtividade a uma terra onde, nas suas palavras, “o sol queima mais do que as ideias florescem”.
A lenda do “amigo dos árabes” é, no mínimo, uma meia verdade. Lawrence lutou ao lado das tribos árabes contra o Império Otomano, mas nunca deixou de ser um homem do Império Britânico. Via nos árabes coragem e fé, mas também desorganização e atraso. E via nos judeus, que começavam a regressar à Palestina, um modelo ocidental capaz de transformar ruínas em cidades.
A equação de Lawrence era simples e perigosa: o entusiasmo árabe com a disciplina judaica. “Arabia for the Arabs, Judea for the Jews”, escreveu. Um slogan que hoje faria tremer qualquer diplomata da ONU ou negociador de paz. Lawrence sonhava com fronteiras limpas, como linhas traçadas num papel. Mas o deserto nunca foi um mapa. É, na verdade, uma metáfora. E ele, com todo o seu fervor idealista, acabou engolido por ela.
Num hotel de Londres, em 1919, Lawrence sentou à mesma mesa o príncipe Faisal, representante dos árabes, e Chaim Weizmann, líder do movimento sionista. Serviu chá, traduziu, sorriu. Acreditava que aquele gesto simples podia mudar o curso da História.
Por alguns minutos, pareceu possível: os dois homens apertaram as mãos e assinaram um acordo que prometia colaboração entre árabes e judeus na futura Palestina. Chamaram-lhe Acordo Faisal-Weizmann. Só que durou o tempo de arrefecer a chávena e nem chegaram a beber o bule todo.
Lawrence, otimista incurável, achava que os povos podiam entender-se se partilhassem o mesmo dicionário. Descobriu tarde que a palavra “terra” (prometida) tem traduções incompatíveis.
Poucos meses depois, Lawrence visitou Gaza. Winston Churchill, então ministro das Colónias, também foi. O cenário parecia diplomático: multidões, bandeiras, discursos. Mas a rua gritava “morte aos judeus”, enquanto os ingleses pensavam que eram aplausos. Lawrence percebeu as manifestações hostis, mas calou-se. Aprendeu o que o Ocidente ainda hoje não entende: no Médio Oriente, o entusiasmo e o ódio soam quase iguais. A sua utopia multicultural derreteu-se como gelo no deserto. Cem anos depois, Gaza continua a repetir o mesmo coro, agora amplificado por megafones e drones. O idealismo europeu virou ruído de fundo num conflito sem data de validade. E se Lawrence pudesse ver o estado do mundo que quis reformar, talvez escrevesse o epitáfio que lhe faltou: “Aqui jaz a ingenuidade.”
David Lean pegou nessa tragédia política e transformou-a num épico existencial. O cinema fez o que sempre faz quando não sabe lidar com a política: filmou o deserto e calou as causas.
Em Lawrence da Arábia, não há judeus, nem Weizmann, nem acordos de paz. Há luz, poeira, vento e o olhar azul de Peter O’Toole. Lean filmou a solidão, não a diplomacia.
A areia tornou-se símbolo de pureza quando, na realidade, escondia cadáveres e ressentimentos. Foi um golpe de génio e de manipulação. A lenda venceu a História. Hollywood lavou o sangue com estética e deu-nos um herói trágico onde havia um burocrata sonhador.
Lawrence acreditava que os árabes precisavam dos judeus, e que os judeus precisavam da terra. Hoje, essa fórmula parece uma ironia cruel.
Israel floresceu – tecnológico, urbano, próspero, mas também violento. Gaza definhou, pobre, sitiada, furiosa, até ser dominada pelo Hamas.
A profecia cumpriu-se pela metade. Lawrence subestimou a força da humilhação. Pensou que o progresso económico traria paz espiritual. Esqueceu-se de que identidade não se compra com infraestrutura. A sua visão de “cooperação produtiva” morreu logo que o primeiro colono ergueu uma bandeira. Era um idealista em guerra com o realismo britânico e com o orgulho árabe. Um homem que acreditava em pontes, mas acabou apenas a construir metáforas.
Corta para 2025. Donald Trump, mediador de um novo acordo de paz entre Israel e o Hamas. O homem que já vendeu tudo – do casino ao patriotismo – decide vender também a paz. A diferença é que Trump acredita que ela se faz com assinaturas em direto e slogans em prime time. Até ver… Lawrence, pelo menos, acreditava em ideias. Trump acredita em manchetes.
Mas ambos partilham algo essencial: a mesma ilusão de que o deserto pode ser domesticado. Ver Trump a posar entre Netanyahu e líderes árabes para selfies históricas é ver a caricatura do sonho de Lawrence, a mesma encenação imperial, só com menos poeira e mais marketing.
Há algo profundamente literário neste ciclo de promessas e fracassos. Gaza é hoje o espelho daquilo que Lawrence não quis aceitar: o deserto nunca foi o problema, o homem é que é.
Os impérios mudaram, os mediadores mudaram, as armas modernizaram-se, mas o solo é o mesmo. E o silêncio entre duas orações continua a ser o verdadeiro campo de batalha. Lawrence da Arábia ensinou-nos que o deserto é belo de longe, mas impossível de habitar. O mesmo vale para a paz.
Se há lição a tirar de Lawrence e dos seus sucessores, é esta: o deserto nunca se engana. Ouve todas as promessas, vê todos os acordos e continua imóvel.
Lawrence acreditava que podia desenhar um mundo melhor com régua e tinta. Trump acredita que pode fazê-lo com um tweet e depois com uma “Gaza Riviera”. Nenhum deles percebeu que o deserto não lê comunicados. E enquanto o Ocidente insiste em “resolver o Médio Oriente” como quem resolve um sudoku diplomático, o deserto continua a observar, paciente, sarcástico, eterno. As praias de Gaza, antes refúgios de lazer, transformaram-se com o conflito. São agora apenas lugares de sobrevivência e memória.

Nenhum comentário:
Postar um comentário