quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Amanhã a babá não trabalha

Amanhã a babá não trabalha.

Talvez o motorista também falte.

E, por algumas horas, os moradores dos condomínios de luxo do Rio de Janeiro talvez percebam – não o luto, mas o incômodo logístico – causado pela chacina de hoje. Mais de cem pessoas mortas nas favelas. Quatro policiais também. A tragédia é noticiada em letras minúsculas. Nas coberturas à beira–mar, a vida segue, porque o sangue derramado não mancha o piso de mármore.

A favela sangra, e o país finge normalidade.

A ONU se disse horrorizada com a letalidade da operação, mas o Estado brasileiro parece anestesiado pela crença perversa de que “combate ao tráfico” é sinônimo de “licença para matar”.


O discurso oficial fala em “segurança pública”. A Constituição, no artigo 144, também fala: diz que a segurança é dever do Estado e direito de todos, e que sua finalidade é proteger pessoas e patrimônio.

Mas, nas vielas, o que se protege é o medo. E o que se patrimonializa é a morte.
É nas favelas que a polícia entra atirando, e é nas favelas que o Estado faz o luto coletivo parecer rotina.

Mas é nos condomínios de luxo que o crime se recicla, se financia, se protege.
As grandes apreensões de armas, as investigações de lavagem de dinheiro, as conexões entre milícias e políticos não se dão nas lajes, estão nos andares altos, nas contas bancárias discretas, nos contratos públicos e privados que alimentam a engrenagem.

O dinheiro do tráfico tem endereço fiscal, não geográfico.

E quase nunca esse endereço é uma favela.

A Constituição garante, no artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e que a vida é inviolável.

Mas o Estado escolhe quem é “todos” e quem é exceção.

Há brasileiros com direito à investigação e brasileiros com direito à bala.

Há territórios onde o Estado só chega quando decide matar.

E há outros, protegidos por muros e blindagens, onde ele nunca ousa entrar.

Chamar de “operação policial” o que é uma execução coletiva é um eufemismo que serve para limpar a consciência de quem aperta o gatilho e de quem o financia.


A elite brasileira segue acreditando que a violência é um problema de quem morre, não de quem lucra com o medo.

E, por isso, amanhã a babá não trabalha, e talvez isso gere algum desconforto.
Mas ninguém perguntará o nome das mulheres mortas, das crianças traumatizadas, dos corpos que desapareceram entre helicópteros e blindados.

O Estado que mata não é apenas violento, é inconstitucional.
Fere o artigo 1º, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Viola o artigo 3º, que impõe a erradicação da pobreza e da marginalização como objetivo nacional. E trai o artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida.

Cada incursão militar nas favelas é, juridicamente, uma suspensão temporária da Constituição.

É o Estado declarando guerra contra parte de seu próprio povo.

O Brasil é um país onde a desigualdade tem endereço e a morte tem CEP.

Enquanto o asfalto debate “segurança”, o morro enterra filhos.

Enquanto a elite posta indignação seletiva nas redes sociais, mães de periferia lavam o chão do sangue.

O que se chama de “combate ao tráfico” é, na prática, o combate à favela.

E o verdadeiro tráfico, o de armas, de influência, de dinheiro público, permanece intocado, protegido por sobrenomes e escritórios de advocacia de alto padrão.

Amanhã a babá não trabalha.

E talvez, no incômodo passageiro de quem terá de levar os próprios filhos à escola, o Brasil perceba o que sempre se recusou a enxergar: a vida na favela vale menos porque o Estado assim decidiu.

E enquanto não decidirmos o contrário, não haverá Constituição que nos salve da barbárie.

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