terça-feira, 17 de setembro de 2019

A fábrica de inimigo de Bolsonaro

Temos aqui um post-padrão de Jair Carlos Bolsonaro – e que é a expressão sintética de alguns pilares fundamentais da mentalidade bolsonarista. Vamos, pois, examinar – destrinchar – a publicação. Creia, leitor: há uma longa história – ideias, portanto – a alicerçar a coisa.
“Enquanto lutamos entre nós o inimigo se fortalece.” Esta é uma construção típica do bolsonarismo, obra da forja artificial de crises e inimigos – a fábrica de teorias conspirativas – que alimenta a estrutura miliciana digital de apoio ao fenômeno reacionário do bolsonarismo. Está contida naquela pregação maior – sem a qual Jair Bolsonaro não seria presidente – que investe na tensão constante, na ameaça permanente (o inimigo sempre à espreita), que radicalizou a polarização a ponto mesmo de estabelecer um “nós contra eles” total, presente em todas as brechas e arestas do convívio social. Um nova etapa no processo de esgarçamento do tecido social que materializa a depressão política profunda em que vamos metidos.

Segundo a fé bolsonarista, haveria uma luta maior, contra aqueles – concentrados no establishment, Congresso, STF e imprensa neste balaio – que operam para impedir que a revolução purificadora cavalgada por Bolsonaro prospere. Por isso, o presidente pede – já falou a respeito com todas as letras – unidade; que seus apoiadores lhe deem um voto de confiança (eterno). Que não pelejem entre si. Que não – nem sequer timidamente – o critiquem (ou serão traidores, caçados pelos milicianos digitais). Refere-se, por exemplo, à indicação do novo procurador-geral da República, que estremeceu o chão do bolsonarismo, aquele que é em boa parte assentado sobre o fetiche do combate à corrupção como o maior problema do Brasil. Enquanto se perde tempo com desconfianças internas, atenção!, o inimigo se fortalece – eis o alarme disparado pelo bolsonarismo.


“Não temos como agradar a todos, vasculham minha vida e de minha família desde 1988, quando me elegi vereador.” Outro recorte de abordagem recorrente no discurso bolsonarista. Bolsonaro pode se comunicar com muitos, a depender das circunstâncias, como ocorreu na eleição de 2018, em que – dada a força do antilulopetismo – alcançou milhões e preencheu o campo do centro político; mas fala (no sentido de se dirigir) para poucos, investindo na polarização, ciente de que ocupa posição privilegiada: sentado na cadeira de presidente, senhor do peso da caneta do Executivo, sabe que uma base fiel de 15%, talvez 20%, do eleitorado é baita ponto de partida para sustentá-lo como candidato muito competitivo – por que não favorito? – a 2022.

Pesquisas eleitorais que indicam queda de popularidade, a rigor, pouco lhe importam. Bolsonaro não tem – e sabe que não tem – o perfil de candidato vencedor em primeiro turno. Não é um agregador. Ele precisa da cisão – de ganchos que deem materialidade aos extremos. Precisa de Lula vivo, de Lula ativo, de Lula solto. Precisa de gatilhos que emprestem verossimilhança à radicalização. Na disputa presidencial argentina, por exemplo, quem realmente acredita que ele torce por Macri, se será a vitória do kirchenerismo a lhe dar a narrativa alarmante dos riscos de retrocesso à esquerda na América do Sul?

Não se trata, pois, de não ter como agradar a todos. Mas de não querer – deliberadamente – fazê-lo. Ele chegou até aqui – com sucesso – dividindo, rachando. Não agradar a todos significa agradar aos seus. Bolsonaro precisa cultivar seu nicho eleitoral tanto quanto multiplicar inimigos e ameaças. É uma engrenagem que se retroalimenta. Nada mais óbvio do que lubrificar esse motor com a vitimização de perseguido – pobre vida vasculhada – há trinta anos.

“Nossa inimiga: parte da GRANDE IMPRENSA. Ela não nos deixará em paz. Se acreditarmos nela será o fim de todos.” Manifestação exemplar de ordem unida – de convocação. Não interessa se em modalidade infantil. Não interessa. É o presidente da República quem chama, quem aponta. Não é pouca coisa. O uso do “nossa”, abrindo o parágrafo, faz a diferença. O inimigo não é apenas de Bolsonaro ou da corte governante, mas também dos que estão com ele nas ruas, dos seus fiéis. É investimento tribal; uma aposta em acolher – um canto que mui fácil e especialmente atrai os ressentidos, a própria carne do bolsonarismo.

Vê-se, neste manifesto, o presidente – em desabrido exercício paternalista – exortar aos seus como se disciplinasse os filhotes. Trata-se de evidente movimento limitador de existências individuais. O presidente fala ao gado; manada já longamente testada. Basta tocar o berrante. Indicar o norte. Funcionou na campanha, e a campanha nunca acabou – o bolsonarismo, sabe-se, consiste em campanha infinita. Está dado. O inimigo é este – e acabou. É guerra. Não há tempo para pensar. Que se avance. Não haverá paz.

Claro que a grande imprensa seria a inimiga. Qual a novidade? Sempre foi – assim como será toda a instituição, de natureza autônoma, que não se submeter ao controle do líder carismático. Isso serve, por exemplo, para a Polícia Federal.

Imprensa equivale a fazer circular informação livremente. Desqualificar a imprensa equivale a desacreditar a informação – um empreendimento bolsonarista tocado pessoalmente pelo presidente: este segundo o qual quem crê no jornalismo decreta o próprio fim e dos demais; de todos. E isto vindo de um presidente que tem a pretensão de se noticiar diretamente, sem intermediários. Isto vindo de um presidente que desinforma como método; que – é preciso dizer – mente como estratégia.
Carlos Andreazza

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