Desde que Paulo de Tarso declarou que “se Cristo não ressuscitou [...]é vã a nossa fé” (I Coríntios, 15), interessava aos cristãos o Jesus ressuscitado, não o sacrificado em uma madeira, como um assassino qualquer. Daí que nos primeiros séculos do cristianismo não existissem pinturas nem esculturas de Jesus crucificado, só um Cristo glorioso.
A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado
Nas catacumbas romanas, tanto nas de Santa Priscila como nas de São Calixto, onde se escondiam os cristãos para fugir da perseguição romana, não existem pinturas de Jesus na cruz. O líder dos cristãos aparece ou na imagem do Bom Pastor, ou celebrando a Última Ceia com os apóstolos, ou ainda criança nos braços da sua mãe. Nunca morto.
Lembro que no Instituto Bíblico de Roma nosso professor de idioma ugarítico, o jesuíta Follet, explicava-nos essa ausência da imagem de Jesus crucificado entre os primeiros cristãos: “Se o seu pai tivesse sido condenado à cadeira elétrica ou à guilhotina, certamente, por mais inocente que tivesse sido, vocês não levariam no pescoço uma efígie desses instrumentos de morte”, nos dizia ele. E acrescentava: “Ninguém conserva fotos dos seus familiares ou amigos quando mortos, e sim vivos e felizes”. Isso é o que ocorria com os cristãos: preferiam recordar Jesus em vida ou glorificado depois da sua morte.
Curiosamente, foi um imperador romano, o pagão Constantino, o Grande, quem introduziu a representação da cruz, mas sem o corpo de Jesus. Foi quando se converteu ao cristianismo, depois de ter tido um sonho, antes da batalha contra Magêncio, em que viu uma cruz e ouviu uma voz que dizia: “Com este signo vencerá”. O Império Romano começava a se debilitar, e o imperador percebeu a força da seita dos cristãos que se deixavam matar em vez de adorar seus deuses pagãos. Constantino quis conquistar aquela gente, e o cristianismo passou de açoitado a ser religião oficial. O imperador ganhou a batalha, e sacralizou-se o sinal da cruz, que foi aceito como símbolo cristão pelo Concílio de Niceia no ano 325.
Mesmo assim, trava-se apenas da cruz nua, sem o corpo de Cristo. Os primeiros crucifixos com o Jesus agonizante ou morto aparecem só no século V, e com muitas polêmicas. Os cristãos continuavam preferindo a imagem de Jesus vivo ou ressuscitado. Apenas na Idade Média, mais de mil anos depois da morte de Jesus, apareceram as primeiras representações dos crucifixos com o corpo dele mostrando os sinais de dor, sangrando pelas mãos, os pés e nas laterais.
A única pintura do crucifixo que aparece já no século I, considerada como a “primeira blasfêmia cristã”, é um grafite numa parede de gesso em Roma, ridicularizando os cristãos e Jesus. O crucificado aparece com a cabeça de um asno e a seguinte inscrição: “Alexamenos, adorando o seu deus”. Era uma zombaria com os primeiros cristãos, cujo deus os romanos haviam matado como um criminoso comum.
Isso significava, ensinavam-nos no Instituto Bíblico, que, sob a influência da conversão de Constantino, a Igreja começou também a se hierarquizar e a se revestir com os símbolos do poder mundano. Na verdade, se fez política e até mesmo drama com a crucificação para fomentar-se a teologia da cruz e do pecado, em detrimento da teologia da ressurreição e da esperança.
Para a Teologia da Libertação, por exemplo, a crucificação é o símbolo de todos os torturados e assassinados injustamente na história da humanidade, e a ressurreição é a grande esperança de todos os excluídos. Essa teologia, tão enraizada na América Latina, tentou ser uma volta ao cristianismo primitivo, no qual se destacava a imagem do Bom Pastor em vez da do crucificado. Entretanto, a Igreja, que até o papa Francisco ainda se revestia com os símbolos do poder dos imperadores romanos, preferiu inculcar a teologia do medo do inferno.
A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado, solidário com essa parte da humanidade que, como nos tempos do profeta crucificado, sempre acaba abandonada à própria sorte.
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