Os atos de violência em torno da caravana do PT não expressam apenas a contrariedade de parte da população com aquele partido e seu líder. Antes de tudo, indicam a degeneração do sistema político, incapaz de promover o diálogo e a mediação do contraditório, substituindo tapas, pedradas, ovos e tiros por algo mais sofisticado, como a comunicação e o debate de ideais.
Culpa de quem? De muita gente. Difícil começar a explicar. O PT, é claro, cometeu muitos erros. Foi em uma de suas campanhas eleitorais que deu largada à miséria dessa política, ao lançar mão de raciocínio rude e populista, expresso na formulação simplória ''nós contra eles''. Para quem planejava representar a sociedade, dividi-la foi pouco inteligente. Negação da política e do governo, cujo objetivo é unir.
Hegemonismo e arrogância expressam insegurança. Os adversários do PT adoraram. Dava-se a eles o monopólio da interlocução de tudo o que não fosse ''nós'' — ou ''eles'', sabe-se lá —, que não se identificasse com os valores do petismo, já uma variação dentro da própria esquerda. Para quem tanto reclama respeito à diversidade, mais que contradição, foi um erro fatal.
Em junho de 2013, multidões saíram às ruas sem saber exatamente porquê — não foram, de fato, os 20 centavos das passagens de ônibus; foi talvez a busca de identidades primárias: saber, afinal, quem eram os ''nós'' e definir quem seriam os ''eles''.
Aberta a Caixa de Pandora, só a esperança é que ficou contida. O mal-estar se espalhou por toda a campanha eleitoral de 2014, empobrecida pelo predomínio de figuras pouco sofisticadas como Dilma Rousseff e Aécio Neves; desorientada pela perplexidade paralisante de Marina Silva.
Nem sempre a eleição é remédio para os males; às vezes, os agrava. O mal-estar sobreviveu à disputa de 2014 e avançou pelo processo de impeachment de Dilma, alentado pelo oportunismo fisiológico cujo emblema maior repousa na figura do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, hoje guardado em Curitiba, repousando seu ressentimento e sua bílis.
Mas, não foi apenas ele, é claro. O impeachment, cimentado com a argamassa dos erros de Dilma, fundiu uma série de outros oportunismos. Como os do PMDB (MDB), que enxergava na derrocada petista um atalho para o poder que estancaria ''a sangria'' agora exposta pela Operação Lava Jato. Foi o que pontificou Romero Jucá, o intelectual orgânico que o presidencialismo de coalizão hiperfisiológica foi capaz de gerar.
Também não fica de fora o PSDB, que, ressentido com a derrota de 2014, andou de braços dados com Eduardo Cunha; serviu de esteio ao governo do PMDB e foi entusiasta da teoria do estancamento, ideia-força de Romero Jucá, Michel Temer e Aécio Neves: ''estancar a sangria'' foi como colocar um dique à sociedade. Não tardaria, as águas romperiam esse tipo de barreira.
Feitos como expressão do equilíbrio entre a cauda e o bico, os tucanos perdem o prumo e diluem-se na geleia geral do Centrão. Geraldo Alckmin, candidato sob encomenda para reconstruir o Centro e aplainar as asperezas da desinteligência, mete-se a inoportuno analista: ''o PT colhe o que planta''. Apenas o PT? Bombeiros não apagam fogo com gasolina, governador.
Tampouco é apenas tudo isto: o conflito, que não teve mediação da política, perdeu a salvaguarda da Justiça. Naturalmente, a política se judicializaria como efeito de sua incapacidade de contornar o conflito. Mas, foi, gradativamente, a Justiça que se politizou. Isto fez com que se fragmentasse numa miríade de visões de direito, justiça e, até, de interesses políticos, perdendo a unidade e a orientação de um Pleno, no Supremo Tribunal.
Incapaz de decidir, a Justiça não contorna interesses e já não arbitra conflitos. É claro que isto tudo estouraria como violência, nas ruas. A Humanidade requer Política, Estado e Justiça. O que fazer quando ela própria já não parece capaz preservar esses instrumentos que a preservam? Não, a solução não está no despotismo esclarecido. Até porque déspotas quase nunca são esclarecidos.
Carlos Melo
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