A trajetória do protagonista Ariel em certa medida parafraseia o provérbio africano que diz: “Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”. Jovem negro, morador do Nordeste de Amaralina, bairro pobre da capital baiana, preso sem entender sob que acusação, sem direito a um julgamento justo, violentado nas instalações do sistema prisional, é o sujeito em primeiro plano de uma revolução que se dá pela soma da consciência das fissuras do sistema e da corrupção do Estado, da força das ações coletivas e do acesso, ainda que mínimo, ao conhecimento. A narrativa da vida de Ariel, antes e durante quatro anos na prisão, mescla ficção e realidade de vários jovens negros como ele. A partir de sua experiência carcerária, conhecemos diferentes perfis de homens pretos marcados pelo racismo, extremamente eficiente, pode-se dizer, em suas práticas de exclusão e morte.
A cadeia, narrada por Borges, acumula memórias das pequenas humilhações cotidianas da população negra da Bahia, do medo de ser confundido com bandido na rua ou de acabar “esquecido” na prisão por falta de um defensor público. Além disso, as condições de alimentação, higiene e atendimento médico precários são explorados com a honestidade que falta muitas vezes em outros tipos de relatos, como os dos programas policiais de televisão. Destaca-se também o protagonismo das mulheres na luta, na contracorrente dos constrangimentos a que são submetidas mães e companheiras dos homens presos durante as visitas ou nas abordagens policiais nos bairros.
Um elemento fundamental do enredo é a recuperação da Chacina do Cabula, o que coloca o livro inevitavelmente na encruzilhada entre ficção e documento. Na chacina, doze jovens, entre 16 e 27 anos, foram mortos pela Polícia Militar da Bahia em fevereiro de 2015. Os laudos à época indicaram que foram disparados 143 tiros, 88 atingindo os corpos em posição de autodefesa. Os nove policiais militares indiciados pelo crime são réus e chegaram a ser julgados e absolvidos no mesmo ano, porém a sentença foi anulada após pedido do Ministério Público da Bahia.
Da trama real à escritura, o romance faz dois movimentos importantes; o primeiro, um recuo necessário na história recente da cidade de Salvador, para falar do genocídio da população negra e periférica, da militarização do sistema carcerário, das condições de vida dos presos, do racismo estrutural que marca previamente negros como população preferencial dos presídios e que nos serve de janela para pensar sobre o que ocorre em todo o país. O segundo, igualmente profundo, é o chamado sobre o poder transformador da literatura. Ariel mantém a sanidade quando preso graças ao amor pela namorada que o ajudou a aprender a ler longe da faixa etária prescrita pelo sistema de ensino, e por meio de uma escrita quase compulsiva praticada a contragosto das condições do presídio. Resumindo assim, pode soar romântico ou populista, mas não é, como não foi com Lima Barreto, Solano Trindade, Paulo Colina, Adão Ventura e tantos outros autores que deram tessitura a corpos negros. Ariel, sujeito que deve ser pensado no coletivo, e o livro que escreve nas paredes da penitenciária acabam por homenagear à literatura enquanto lugar de resistência e proteção.
Encontrar o equilíbrio entre ficção e história, forma literária e conteúdo, escrita e denúncia é a tarefa incontestável do autor. Ariel transmuda uma cela em biblioteca e as paredes de uma solitária em folhas de papel, convocando o leitor a pensar como a leitura pode mudar rumos. Como bem define Matheuza Xavier, militante da organização política “Reaja ou será mort@” e coordenadora da Escola Pan-africanista Winnie Mandela, ele é “o herói tão esperado de nossos tempos, da pele preta e com lápis na mão”.
Do livro também escorre uma atualidade desconfortante, comprovada de novo pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o assombroso número de pessoas mortas pela polícia. Para trazer à superfície a violência por que é marcada a vida da população negra, além de Ariel, conhecemos uma galeria de personagens invisíveis no cotidiano branco de classe média; são homens, vendedores ambulantes, catadores de material reciclável, porteiros e lixeiros que se deslocam para os bairros nobres durante o dia. São mulheres que carregam o mundo nas costas, porque maternar homens e mulheres negros sabendo como opera o sistema de exclusão é a primeira batalha das suas vidas, e depois porque elas vão para o front em nome da justiça e em defesa dos direitos de filhos, sobrinhos e companheiros.
Em termos de representação de personagens negros, dar humanidade a quem o tecido social muitas vezes renega é algo a ser mais explorado na literatura. Os novos nomes que despontam em festas literárias e selos editoriais preocupados com esta autoria fazem uma curva importante, mas ainda incipiente, sobretudo em se tratando de temáticas específicas, como é o caso de Hamilton Borges. Ciente disso, o autor assume a posição de um escritor que quer propor novas representações não apenas da população preta, mas daquela que ocupa talvez a mais perversa instituição de controle social. O desafio de denunciar o Estado e ao mesmo passo humanizar personagens que apenas mais recentemente deixam de ocupar papeis subalternos torna o livro necessário para qualquer leitor disposto a entender o mundo equivocado e cruel em que fomos arremessados. É um convite a conhecer outras perspectivas sociais, o que deveria bastar como experiência estética. Para além, é claro, de marcar em nossa literatura atual uma narrativa de compreensão da própria história em marcha a partir da visão de sujeitos sem privilégios, alijados em uma posição quase intransponível de mobilidade social.
Com O livro preto de Ariel, Borges parece encerrar uma primeira e bem realizada trilogia em diferentes gêneros (conto, poesia e romance), uma vez que nos livros anteriores, Salvador: cidade-túmulo (2018) e Teoria Geral do Fracasso (2017), o autor trata dos mesmos temas: violência contra negros, racismo antinegro, as condições e os modos de operar do sistema penitenciário. Na capital mais negra do país, na cidade mais negra fora da África, ter a pele preta, para usar o emblemático título de Ana Maria Gonçalves, já é “um defeito de cor”. O livro preto de Ariel chega em hora apropriada, quando não apenas a Bahia, mas todo o país, precisa com urgência enfrentar a crueldade que nos leva dois séculos para trás e nos recoloca num lugar de barbárie.
Edma de Góis
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