domingo, 21 de fevereiro de 2021

Um romance do nosso tempo

Venho acompanhando com curiosidade de escritor a última polêmica que agita a sociedade portuguesa: uma intriga complexa, com a qual se poderia escrever um romance sobre algumas das grandes questões deste nosso tempo, do racismo estrutural às perversões do colonialismo. 

Tudo começou com o recente anúncio da morte do militar mais condecorado da história do exército português, o tenente-coronel Marcelino da Mata. Nascido na Guiné-Bissau, numa humilde família de camponeses católicos, Marcelino alistou-se no exército português para combater os nacionalistas guineenses do PAIGC, subindo a pulso na hierarquia militar. Morreu em Lisboa, vítima da atual pandemia.

A direita e extrema-direita portuguesa aproveitaram a morte de Marcelino para homenageá-lo, celebrando nele, não tanto o homem que foi, mas o regime que ele serviu. Uma parte da esquerda indignou-se com as homenagens, denunciando Marcelino da Mata como um criminoso de guerra. 

O rosto mais visível do movimento contra Marcelino da Mata é o do ativista antirracismo Mamadu Ba, senegalês naturalizado português, com laços familiares com a Guiné-Bissau. Ba é desde há muito tempo um dos alvos preferidos da extrema-direita, pela coragem com que vem desmontando o mito do bom colonialismo lusitano, e também devido à cor da sua pele. Um português branco que diga o que ele diz não se arrisca tanto a ser contestado e agredido. 

Monumento em lembrança ao massacre
das forças portuguesas em Wiriamu (1972)

Militares que combateram ao lado de Marcelino da Mata relatam inúmeros casos de assassinatos da população civil, incluindo de mulheres e crianças, protagonizados pelo militar. O próprio Marcelino se gabava de ter torturado guerrilheiros. Confrontados com estas denúncias, os políticos de direita alegam que em todas as guerras se cometem excessos. É verdade. Também é por isso que se criou na legislação internacional a figura do criminoso de guerra. 

O regime colonial português compreendeu muito cedo que só conseguiria fazer face aos movimentos nacionalistas africanos se começasse a recrutar jovens originários dos territórios ocupados. Muitos terminaram desertando para o lado dos guerrilheiros. Outros, como Marcelino da Mata, acreditaram, ou fingiram acreditar, na ideologia colonial, combatendo até o fim à sombra da bandeira das quinas. Os comandos guineenses tiveram um infeliz destino: foram fuzilados como traidores logo que os portugueses abandonaram o país. Nenhum dos seus antigos comandantes se levantou para os defender. Marcelino escapou porque estava em Portugal. 

Talvez seja deformação profissional, mas sempre que me apresentam um torturador fico pensando em que momento a história se torceu, para torturar e deformar a ele. Existem, é claro, homens que são maus da mesma forma simples que os felinos são ágeis, elásticos e sem inquietações espirituais. Nem toda maldade carece de explicação. Suspeito, contudo, que o caso de Marcelino da Mata é muito mais complexo. Tanto ele quanto Mamadu Ba poderiam dar grandes personagens de ficção. Ambos se distinguem pela coragem. Marcelino usou a bravura para semear violência e dor. Mamadu usa-a para combater o ódio. Eu escolho admirar Mamadu. 
José Eduardo Agualusa

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