A obviedade da pergunta fala da sua surpreendente e intrigante força. Já vivemos guerras mundiais, mas, nesses conflitos, o inimigo tem uma visibilidade uniformizada que obriga a saber quem somos. Somos, é claro, os bons, os agredidos e os visionários; enquanto “ele” — o adversário que nos obriga a ter uma bandeira — desnuda aquilo que nos falta ou que possuímos em demasia.
O ranço de castigo da pandemia engendra uma batalha bíblica. A máscara é seu emblema e escudo material contra um inimigo que mata impiedosamente, mas, como não tem consciência, projeto ou plano, esses traços que definem o que somos, lutamos no nevoeiro.
É claro que, como sempre ocorreu com os escravos, os pobres sofrem muito mais. Mas a desgraça é que qualquer um pode “pegar” ou “ter” o vírus. Dele, como diziam os antigos, ninguém escapa: nem o rei, nem a rainha nem o Papa. Quem não pega paga o preço de ver a olho nu uma estrutura social desenhada para a injustiça e a indiferença, essas mães de uma desigualdade estrutural e, bem pior, estruturada.
O inimigo humano, ou humanizado como um animal selvagem, é previsível. Para ele, somos um oponente ou um alimento. O vírus, porém, ataca como a velhice ou a bem conhecida burrice, alérgica ao bom senso. A Covid-19 envenena o ar e interdita o abraço.
No Brasil, a pandemia desnuda quem se imagina especial, nobre ou superior. Essa gente que está em todo lugar e tem a liberdade de não obedecer a nenhuma regra ou de servir a qualquer governo. “Eu fumo há 70 anos, e meu cardiologista morreu aos 60! Acho um abuso um sinal vermelho e, quando vejo um pedestre atravessando a rua, acelero meu carro, principalmente se for um velho caquético ou uma negra com o filho nos braços.” Civilização, dizem, é saber o seu lugar!
Alguns devem ser esculhambados, outros são intocáveis (pertencem a Deus, como o João; ou ao diabo, como Madame Satã). Se você ainda não aprendeu essa distinção, você está perdido...
Num Brasil pré-globalizado, um telefonema do Rio para Niterói tinha que ser solicitado, todo mundo andava de gravata, e os pretos eram impedidos de frequentar certos lugares porque sabiam quem eram. Até a praia podia ser contaminada por mulatos farofeiros, e não por morenos queimados como nós.
Neste reino da desigualdade, era raro não saber quem éramos. Tínhamos pai e mãe e nome de família! Conhecíamos “todo mundo” — um eufemismo para os donos do poder que até hoje existem e mostram sem cerimônias suas patas. Vivíamos (?) numa sociedade onde todos sabiam quem eram. Não duvidávamos das nossas identidades sociais abarrotadas de prerrogativas, privilégios, subordinação e, consequentemente, de hipocrisia. Nesse sistema, os indesejáveis, como foi o caso de Lima Barreto (tido como mulato pernóstico), eram banidos dos jornais.
Numa sociedade de ideário aristocrático, na qual abundam gênios e príncipes, reis, queridinhos e patrões, os círculos mentais estão bem demarcados. A crítica honesta é rara; a franqueza, colega da honestidade que desmascara, é indesejável.
Dominados pelas gradações encarnadas em cargos, pessoas e relações, nosso “normal” é a desigualdade estampada numa ética da pobreza e da caridade pessoal, que reafirma a superioridade generosa de quem dá e a piedosa inferioridade de quem recebe e claramente inibe a filantropia institucionalizada e impessoal. A pandemia revela um sistema desenhado para produzir devedores. Convivemos mal com cidadãos (a palavra é ofensiva), preferindo dependentes.
Cabe a pergunta: num Brasil que engendra multidões de mandões, patrões, gênios da raça, salvadores da pátria, homens de Deus e leis que variam de acordo com quem comete o crime, será mesmo preciso usar máscaras? Ou estamos todos mascarados porque sabemos bem quem somos?
Nenhum comentário:
Postar um comentário