A pandemia nos trará um mundo ainda mais competitivo? Ou haverá espaço para que o sofrimento de milhões de infectados alimente projetos de cooperação? A crescente competição entre Estados Unidos e China permanecerá no centro das atenções? Ou ainda se pode esperar alguma iniciativa conjunta para redução de danos?
As perguntas são acompanhadas por números. Para eliminar completamente a ação do coronavírus, será necessário vacinar boa parte dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta. Muitas empresas ao redor do mundo já estão em etapas avançadas de desenvolvimento de vacinas que pretendem colocar à disposição dessa enorme população.
Mas os primeiros da fila deverão ser os habitantes dos países mais ricos e poderosos. Segundo a agência de notícias Bloomberg, esses países já bloquearam mais de um bilhão das primeiras doses a serem produzidas no mundo. Diversos acordos estão sendo articulados entre governos dos Estados Unidos, da União Europeia, do Reino Unido e do Japão para garantir o rápido abastecimento de suas populações.
Existem também acordos com países em desenvolvimento, como os celebrados com o governo federal brasileiro e com o governo paulista, respectivamente, por grupos do Reino Unido e da China. Mas o Brasil pode ser um caso à parte, por ter uma enorme população afetada pela pandemia que atrai os laboratórios por sua capacidade de testar as novas vacinas.
Somente no caso da vacina desenvolvida em Oxford, o Brasil já obteve a promessa de 100 milhões de doses. Não é o suficiente para proteger toda a sua população. Mas as perspectivas parecem ainda mais sombrias em regiões como a África subsaariana e o Sudeste Asiático. Que potências ajudarão os países dessas regiões a vacinar sua gente?
Até o momento, a China prometeu tornar suas vacinas bens públicos globais. Ou seja, não deverá cobrar royalties pelo uso das descobertas feitas em seus laboratórios. Mesmo que isso se confirme, porém, ainda será necessário montar uma estratégia de produção e distribuição de vacinas para toda a população mundial. Até o momento não há indicações de que essa iniciativa esteja a caminho.
Por enquanto o que se pode identificar é uma corrida global por negócios e influência. A Rússia, que até então estava fora da lista de países com pesquisas mais avançadas, quer apressar a sua vacina e já busca parceiros internacionais para a sua produção, inclusive no Brasil. Empresas chinesas, europeias e norte-americanas já disputam contratos antes dos resultados da fase final dos testes que estão em andamento ou ainda nem começaram.
O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Gebreyesus, procura demonstrar cautela. Ele afirmou que não existe “bala de prata” contra a Covid 19 e que as vacinas, mesmo bem sucedidas, poderão ser efetivas apenas durante alguns meses.
Mesmo assim, o tema chegou definitivamente à política. Em busca de uma hoje pouco provável reeleição, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, quer pressa na liberação de vacinas para a população de seu país. Depois da má gestão do combate à pandemia, que fez da nação mais rica e poderosa igualmente a mais afetada pelo vírus, o presidente pretende fazer de uma rápida vacina poderosa arma na busca de mais um mandato.
Essa pressa pode ser perigosa, segundo especialistas ouvidos pelo The New York Times. Pesquisadores de dentro e de fora do governo, de acordo com o jornal, temem que a Casa Branca pressione a poderosa agência de liberação de alimentos e medicamentos, a Food and Drug Administration, a fazer vista grossa para dados ainda insuficientes e garantir liberação pelo menos parcial das vacinas antes das eleições de novembro.
Em campanha aberta pela reeleição, Trump disse que espera ter a vacina à disposição “muito, muito antes do final do ano, bem à frente do planejado”. O tempo dirá se ele tem razão e se a pressa o ajudará a obter os votos necessários para permanecer na Casa Branca.
Enquanto isso, o mundo espera por uma definição. O calendário eleitoral norte-americano terminou por coincidir com momentos decisivos do combate à pandemia. Tanto que Trump, em gesto mais ousado do que de costume, chegou a propor o adiamento das eleições. O comportamento errático do presidente já motivou a imprensa dos Estados Unidos a questionar seriamente se Trump viria a aceitar uma derrota nas urnas.
O resultado será conhecido em três meses. E a decisão dos eleitores norte-americanos tem tudo para se transformar em um dos principais fatores na construção da ordem global pós-pandemia. Para consumo doméstico, a escolha do novo presidente será importante para proteger a saúde da população e lhe abrir a perspectiva de novos empregos. Para os outros 7,5 bilhões de habitantes do planeta, há muito mais em jogo.
Trump adotou uma espécie de super-nacionalismo na Casa Branca. Fez do Make America Great Again o seu mantra, renegociou acordos comerciais, entrou em conflito com parceiros europeus como a Alemanha e, mais do que tudo, adotou uma dura política de contenção da China. Uma política que chega ao detalhe de proibir o funcionamento nos Estados Unidos de uma empresa chinesa como a Tik Tok, de compartilhamento de vídeos.
Caso o presidente vença as eleições, ele deve dobrar a aposta. Tanto que países como o Brasil ainda aguardam o resultado do pleito antes de tomar decisões importantes, como a permissão para que a também chinesa Huawei venha a participar da implantação da rede de quinta geração de telefonia celular – fundamental para toda a economia digital em expansão.
Se os eleitores americanos optarem pelo democrata Joe Biden, como até o momento sugerem as pesquisas, a postura internacional dos Estados Unidos deve mudar. De uma maneira ou de outra, a política de contenção da China deve continuar. Mas certamente haverá mais espaço para a cooperação – com os próprios chineses, em áreas determinadas, e com outros países.
Em recente artigo para o londrino Financial Times, o editor Martin Wolf alerta que, enquanto os Estados Unidos se retraem, o mundo “desmorona”. Na sua opinião, o país sucumbiu a divisões internas que levaram a um “nacionalismo destrutivo”. E Trump seria o protagonista da rejeição pelos Estados Unidos de seu “papel histórico como modelo de democracia liberal e líder de uma aliança de países com posições semelhantes”.
A China, prossegue o artigo, não fica atrás. Com Xi Jinping cada vez mais fortalecido, seu país tem respondido de forma agressiva a denúncias de violações de direitos humanos tanto em Hong Kong, por meio da adoção de uma nova Lei de Segurança Nacional, como no tratamento da minoria Uighur no noroeste chinês.
“De um lado temos uma superpotência nascente despótica, embora com fragilidades, e, de outro, a atual superpotência que perdeu seu caminho”, compara Wolf.
Quem vier a ocupar o Salão Oval a partir de janeiro terá pela frente um mundo em pedaços. Se tudo correr bem, as primeiras doses das vacinas contra a Covid 19 estarão sendo aplicadas, embora com preferência para as populações mais ricas do planeta. Ao mesmo tempo, os governos estarão em busca de fórmulas para reduzir o desemprego causado pela pandemia.
O mundo precisará de liderança. Mas não para fazer mais do mesmo. Até agora tem prevalecido uma intensa disputa por poder e influência. A rivalidade entre as principais potências não desaparecerá como por encanto. Um pouco de sabedoria, porém, poderá fazer uma grande diferença.
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