Também para Lilia Isolina Java Tapayuri, líder comunitária da etnia Cocama, na reserva Tikuna-Kokama-Yagua, o boto cor-de-rosa é sagrado. Ele ocupa uma parte central em sua vida e trajetória profissional que a levou a ter um papel importante na conservação da fauna fluvial deste recanto da selva amazônica.
Lilia, de 35 anos, nasceu na comunidade de San Francisco, a poucos quilômetros a noroeste de Puerto Nariño, no rio Loretoyacu, um afluente do Amazonas. A fauna do rio a atrai desde pequena, que marcou tanto o significado de sua espiritualidade, quanto sua vida profissional.
Na cosmovisão dos povos indígenas do Trapézio Amazônico, em um mundo dominado pela água, o boto cor-de-rosa reina: uma criatura esguia, porém enigmática, inteligente e cobiçada. Nos últimos tempos, o boto tornou-se um ícone das iniciativas que lutam para preservar o ecossistema, que alcançaram também esta remota região amazônica.
Lilia, da etnia Tikuna da Amazônia colombiana, se dedica à proteção dos seres vivos que habitam os rios |
Apesar da evangelização, muitos preservaram em seu sincretismo fragmentos de seu universo místico ancestral, que divide o mundo em três níveis – água, ar e terra – e no qual a fauna aquática desempenha um papel central. E é neste contexto que, para Lilia, a conservação e defesa da fauna fluvial, como o peixe-boi, o boto, a lontra e o jacaré, significa não apenas defender a floresta e o ciclo biológico do ecossistema, mas também os estilos de vida dos povos indígenas e sua espiritualidade.
Mas de toda a rica fauna aquática amazônica, é o boto cor-de-rosa quem ocupa um lugar central no imaginário indígena. Lilia diz que ele aparece em rituais de celebração como o “pelazón”, um doloroso rito de passagem que consiste em arrancar todos os fios de cabelo das meninas, quando entram na puberdade. O boto aparece à comunidade como uma pessoa, sempre usando atributos humanos como um chapéu, um relógio, um cinto, ou sapatos. “Nessas reuniões”, explica Lilia, “o único capaz de determinar qual das pessoas presentes é um boto, é o xamã”. A pessoa misteriosa, que assiste a estes ritos festivos disfarçada, desaparece nas primeiras horas da manhã, deixando quase nenhum vestígio.
“Um dia o xamã disse aos donos da festa: se vocês não acreditam que ele não é uma pessoa, mas um animal, que é a Yakuruna, a mãe das águas, vamos fazê-lo beber toda a chicha, vamos embriagá-lo”. E a festa começou, e as meninas o fizeram dançar e lhe deram chicha até que se embebedou. Não conseguiu chegar ao rio, e adormeceu na margem. E quando brilharam os primeiros raios de sol, o homem começou a se transformar em um golfinho. E então o xamã lhes disse: vejam, o chapéu daquele boto é uma raia; o relógio é um caranguejo; o cinto é uma jiboia; e os sapatos são peixes. E foi assim que eles descobriram a Yakuruna."
“E a partir daquele dia descobriram também que as mulheres que viviam nas margens dos rios haviam desaparecido”, continua Lilia com olhos brilhantes e a voz um pouco quebrada pela emoção da história. “Elas se encantaram e como moravam perto da água, a Yakuruna as levou embora. Elas haviam se apaixonado pelo boto. Algumas engravidaram e deram à luz a bebês com forma de boto.”
Lilia tem uma relação muito poderosa com a Yakuruna, e hoje dedica sua vida à defesa diária de um ecossistema submetido a múltiplos e contínuos testes de pressão. Felizmente, foi possível controlar as ameaças da pesca ilegal, que anos atrás era muito agressiva devido à presença de barcos refrigerados, em sua maioria do Peru, do outro lado do rio, e métodos de pesca não tradicionais que dizimavam a população de peixes com muita rapidez.
Há alguns anos, uma balsa foi instalada no Lago Tarapoto, para controlar a entrada e saída de canoas, o que tem sido decisivo para o trabalho de conservação deste ecossistema. Dezenas de espécies protegidas estão sendo monitoradas, e Lilia, com coragem e autoridade inquestionável, dirige as operações da balsa, de onde é feita a contagem das populações de diferentes espécies de peixes e mamíferos aquáticos, como lontras, peixes-boi e golfinhos.
Mas a trajetória de Lilia, como o de tantas outras mulheres indígenas, é de luta e determinação constantes. Em meio a um patriarcalismo dominante, em um mundo em que a cosmovisão ancestral coloca os homens na água e as mulheres na terra, o domínio masculino tende a ser absoluto. Essa realidade exige que as mulheres tenham ousadia adicional, se quiserem trabalhar de igual para igual com os homens.
E foi isso que Lilia conseguiu graças à sua relação emocional e espiritual com os botos cor-de-rosa. Seu fascínio a levou a colaborar, ainda quando menina e com o apoio do pai, no cuidado de alguns espécimes. Através de sua sensibilidade especial no cuidado dos animais, Lilia encontrou a porta para aquele mundo, historicamente dominado, material e espiritualmente, pelo homem.
É notável o carinho e a ternura com que Lilia acolhe e mima em seus braços um peixe-boi estressado e desconsolado, que foi encontrado perdido por alguns pescadores. Lilia conta que, devido às mudanças nas condições climáticas e à diminuição do fluxo dos rios, as margens do rios estão mais secas, criando um ambiente que facilita o aparecimento de peixes-boi bebês encalhados, longe do alcance de suas mães.
Lilia abraça e alimenta o pequena peixe-boi com dedicação e carinho. A cena revela até que ponto a relação com a natureza e os seres vivos, não tão diferente dos humanos, é uma questão de empatia e sensibilidade, duas qualidades raras no universo masculino.
Como o peixe-boi, o boto é um animal inteligente e poderoso na água, mas fora dela é um ser absolutamente vulnerável. Ele requer hidratação contínua, carícias para aliviar o estresse extremo, cuidados com suas pequenas e poderosas pupilas.
Foi através desses cuidados que Lilia achou seu lugar no mundo. Seu avô, que já se dedicava a catalogar e proteger a população de botos, apreciou a devoção com que Lilia olhou para o animal enquanto ajudava a manter sua cauda imobilizada. Essa atividade não requer força, mas ternura. Foi esse poder de acalmar os botos que fez Lilia crescer dentro da Fundação Omacha e se tornar a coordenadora da área de fronteira de Puerto Nariño.
Ela compartilha com Aldo Curico, seu marido, essa vocação para o cuidado. Lilia e Aldo moram juntos há 13 anos e juntos passam seus conhecimentos para os três filhos, além de compartilhar o projeto de conservação. Lilia se uniu a Aldo como parceira na luta ambiental e na proteção do território. Ele conhece as áreas de reprodução da fauna aquática, e a acompanha nos longos dias dedicados ao cuidado dos animais.
As atividades permitem manter sua família, e Lila pode conciliar seu papel de mãe e seu desempenho profissional como líder ambiental, ao mesmo tempo que incentiva outras mulheres indígenas a fazerem o mesmo e se unirem à luta para conservar a vida selvagem e prevenir mudanças climáticas, que já afetam o território.
Mas a luta das mulheres indígenas aqui é longa e difícil. Como uma área de enorme beleza natural, a terra Tikuna foi recentemente sujeita à exploração turística, o que trouxe uma certa prosperidade, sem dúvida, mas ao mesmo tempo levou a uma proliferação de atividades ilícitas de todos os tipos. Entre as mais dolorosas e perversas, estão o tráfico de crianças, prostituição infantil e de jovens indígenas adolescentes, agredidas por turistas e outros tipos inescrupulosos.
No ano passado, foram detidos em Puerto Nariño vários indivíduos envolvidos na exploração sexual de meninas e adolescentes colombianas, peruanas e brasileiras. A porosidade da fronteira e a facilidade de mudar de jurisdição nacional em 15 minutos de canoa ao atravessar o rio, favorece a impunidade do crime.
O mesmo é válido para o tráfico de madeira obtida ilegalmente. Não parece ser uma atividade em grande escala, mas barco após barco, a madeira desce o Amazonas, atravessa fronteiras, quebra regulamentos. Ou com a pesca do pirarucu, um saboroso peixe amazônico, cuja caça é proibida na Colômbia durante alguns meses, mas não no Brasil ou no Peru. Como resultado, o peixe acaba sendo consumido também deste lado da fronteira, tornando praticamente impossível determinar sua nacionalidade.
Mas a covid-19, que chegou com toda a sua força incontrolável à Amazônia, trouxe ainda mais incerteza a essa dinâmica já complexa. Mais de 350 mortes e quase 15.000 infectados (dados de 30 de julho) são o prelúdio do que pode acabar acontecendo no território fronteiriço onde moram Lilia e sua família.
Além disso, a restrição da mobilidade também reduziu os controles ambientais sobre os afluentes. Agora, o desafio como comunidade proteger-se para evitar a propagação do vírus. “No início foi um pesadelo para nós, principalmente ouvir que era uma doença que não tinha cura, mas nos tratamos com base nas folhas e cascas das plantas”, diz Lilia, apegada à fé no saber ancestral e espírito de luta dessas comunidades indígenas para as quais, desde os tempos da conquista, resistir é existir.
Apesar das inseguranças deste território distante, Lilia está determinada a defender a floresta e o mundo aquático que a habita, dia após dia. Após alguns dias, ela leva o pequeno peixe-boi para Leticia, capital do departamento do Amazonas na região fronteiriça, onde há melhores instalações para seus cuidados.
Os xamãs dizem que entrar na água é como levantar uma cortina, e cruzar para o outro lado. É como atravessar a porta para outro mundo. E Lilia sabe que este mundo está se afastando destes territórios a uma velocidade já inalcançável.
Mas ela também sabe que ainda há uma oportunidade para que a água, a vida selvagem e a floresta tropical preservem uma harmonia universal que era, no passado, sua única natureza. Essa é sua luta.
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