Chico Buarque de Holanda descreveu minha mãe como “ferida de morte e rindo”.
Sim, em meio à tragédia, enrolada aos panos pretos de seu luto ostensivo, Zuzu Angel soltava uma gargalhada. Não era desvario, era a disposição emuladora para a luta, que não a deixava sucumbir.
A cada nova escaramuça bem sucedida, ela vibrava em suas duas frentes de batalha.
A primeira, na busca do corpo de seu filho, de quartel em quartel, de porta em porta das autoridades, de nomes da imprensa, de qualquer pessoa que a quisesse escutar.
A outra frente era a de denúncia, no exterior, dos horrores praticados nos porões da ditadura brasileira.
Para isso, não havia limites. Desde se vestir de turista americana e conseguir chegar ao inatingível Henry Kissinger, no hotel Sheraton Rio, onde o Secretário de Estado americano era cercado por segurança máxima, a realizar um inédito desfile, até então no mundo da moda, de uma coleção de vestidos de protesto e denúncia política, em casa do cônsul-geral do Brasil em Nova York, Mario Soutello Alves, com presença de representantes das agencias de noticias mais importantes do mundo, Reuters, Associated Press, Tass e outras.
Quando retornava ao Rio de Janeiro, Zuzu elencava os troféus conquistados em sua guerra solitária para denunciar a morte de Stuart e que se parasse de torturar e matar jovens, nos cárceres militares do Brasil. E ria.
Assim como ria, quando chegava à sua loja glamurosa, e participava às clientes – “estou voltando das injeções para apagar as veias das pernas, porque, quando os gorilas me prenderem, das minhas varizes eles não vão rir”. Seria cômico se não fosse trágico.
Em meio ao sofrimento, Zuzu fazia as modelos, Elke Maravilha entre elas, desfilarem suas roupas alegres no ateliê, ao som do “Boi voador”, do Chico, e cantarolava junto “Quem foi, quem foi / Que falou no boi / Manda prender esse boi / Seja esse boi o que for”.
Era um deboche dos militares, chamados por ela de “milicos”, que proibiam ‘bois voadores’ de voar, imaginária e incontrolável manada, em que ela se incluía.
Mas, se, por um lado, com a repercussão de suas ações, Zuzu Angel conseguiu derrubar o Ministro da Aeronáutica da época, o Comandante da Força Aérea e o torturador de seu filho, o brigadeiro Burnier, logrando evitar novas mortes no Galeão e em outras instalações militares no Rio de Janeiro, minha mãe coragem não conseguiu a confirmação oficial do assassinato do filho, em 15 maio de 1971, do qual havia como evidência apenas uma carta do preso Alex Polari d’Alverga.
Assim, entre sucessivas negativas dos militares, chegando ao requinte de hipocrisia de julgarem Stuart à revelia, depois de morto, como se vivo estivesse, minha mãe morreu com uma esperança, mesmo recôndita, fugidia, de que tudo fosse um grande engano, de que Stuart permanecia vivo, foragido, em paradeiro não sabido, e apareceria à sua porta. Ah, como sonhou com isso!
À noite, ela balbuciava “Tuti, Tuti”, e eu, no meu quarto, que se comunicava com o dela, ouvia o lamento, sem poder confortá-la.
Na madrugada de 14 de abril de 1976, Zuzu Angel foi eliminada, numa emboscada comandada por um agente do governo brasileiro, coronel Freddy Perdigão, a partir de ordem dada diretamente pelo gabinete de Ernesto Geisel, segundo depoimento do agente do DOPS Claudio Guerra.
Exatamente 20 dias antes daquela data, em 29 de março de 1976, o oficial da Aeronáutica, Marco Aurélio Carvalho, lavrava num cartório em Caxias, no Rio de Janeiro, uma Declaração em que confirmava a captura, o interrogatório, as torturas e a consequente morte de meu irmão, Stuart Edgar Angel Jones, que ele próprio testemunhara e de que participara.
Apenas 52 anos depois, este documento seria revelado, na noite da última quinta-feira, 23 de março de 2023, quando fui alertada pela jornalista Chris Ajuz e pelo editor José Mario Pereira, dono da Topbooks, de que o leiloeiro Alberto Lopes anunciava, entre os lotes que iriam a pregão na internet no próximo 5 de abril, este documento histórico da maior gravidade.
Acessei o catálogo do leilão, sem conseguir coragem para ler a Declaração, o que não me impediu de agir.
Procurei a promotora Eugenia Gonzaga, casada com o jornalista Luiz Nassif, que me orientou sobre a necessidade de um mandado de busca e apreensão.
Enviei um What’sApp ao meu amigo advogado Carlos Roberto de Siqueira Castro, que eu julgava estar no exterior, e telefonei para o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro – Kakay, também pedindo seu auxilio.
Ambos acordaram que o melhor a fazer seria entrar em contato com o leiloeiro, como fez Kakay, e em seguida com o colecionador, que, sensibilizado, retirou o lote do leilão, dispondo-se a encaminhá-lo a nós. A compaixão existe.
Só na tarde de sexta-feira consegui forças para ler o documento. Revi meu irmão, na sua cortesia e doçura, deixar-se prender sem reação e, com sua firmeza e legitimidade, deixar-se torturar e matar, sem trair suas convicções políticas e seus ideais. Sobretudo, sem trair seus companheiros do MR-8, que confiaram a ele, apenas a ele, a missão de saber o endereço onde se refugiava Carlos Lamarca.
Não houve afogamento, choque elétrico, pau de arara, cadeira de dragão que o convencessem a trair a confiança de seus companheiros.
Não houve fumaça de óleo diesel que o fizesse falar. Queimando por dentro, com os pulmões assados, Stuart morreu sem pedir clemência. Pediu água, bateu asas e voou. Como um angel, como um boi voador.
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