Não se tratou apenas de matar membros de facção adversária; o requinte de crueldade e o sadismo, como esquartejar, arrancar cabeça e coração dos executados, sinalizam as falhas civilizatórias que diferenciam o Brasil. Isso não acontece na Europa, no Japão, nos Estados Unidos, não existem condições para insanas explosões de crueldade.
O fenômeno não resulta apenas das condições atípicas de duas capitais da bacia amazônica brasileira, não é “acidente” isolado, como acenou o presidente Michel Temer, antes que o segundo extermínio confirmasse em Roraima a extensão do mal.
A monstruosidade explode num contexto coletivo degradado, estressado, falido, que fincou os alicerces da barbárie pela ausência de cuidados e de ações voltadas à atenuação das causas.
Por que aqui, e não em outro país? Exatamente por existirem causas não enfrentadas, e talvez, mais ainda, pela falta de um despertar coletivo, dificultado enormemente pelo desrespeito das elites governantes com seus governados.
Embora o volume de reclusos já fosse gigantesco em 2004, com cerca de 330 mil indivíduos, até o ano de 2016 essa população carcerária dobrou para quase 700 mil. O Brasil ocupa, dessa forma, o quarto lugar no ranking mundial de reclusão, agravado pela superlotação, superior a 100% da capacidade oficial.
Os presídios daqui não são certamente modelos de recuperação dos condenados, não correspondem ao fim pontual de mitigação da criminalidade. Apenas a multiplicam e amplificam. São quase irrelevantes face ao contingente total. Cito um exemplo próximo: em minha empresa ocupamos durante oito horas 20 reclusos em trabalhos braçais remunerados, com os salários destinados às respectivas famílias; é pouco, mas ajuda a minorar sofrimentos.
Os dados compilados pelo ICPS (Centro Internacional para Estudos Prisionais, na sigla em inglês) descrevem um aumento de 100% dos detentos até 2030. Quer dizer, 1,5 milhão de indivíduos, com um custo unitário anual de cerca de R$ 70 mil. O Brasil gastará, assim, mais de R$ 100 bilhões para segregar a população condenada, uma quantia superior ao que a União destina à saúde pública.
Esses dados são pavorosos, considerando-se que apenas um em cada 15 criminosos vai para trás das grades; se for verdade como imagino, a banda da delinquência conta hoje com mais de 10 milhões indivíduos, ou 5% da população. Disso vem a escalada da criminalidade, que faz do cidadão um recluso dentro de sua casa para evitar os riscos de assaltos e violências.
Nesse desastre nacional podemos identificar duas colunas no portal de acesso ao crime: o baixo e insatisfatório nível de educação, não só escolar como familiar; o insuficiente desenvolvimento econômico, que redunda no desemprego. Com isso, na ausência de trabalho, que dignifica o homem nesta terra, conjugada ainda com as falhas educacionais, temos um fenômeno explosivo comparável ao estopim num barril de pólvora.
Pesaram também a migração de multidões da área rural e seu adensamento em ambiente urbano de baixa qualidade e sem estruturação. Os aglomerados periféricos, castigados por péssimos serviços públicos, foram embrutecidos pelo tráfico de drogas, e, na ausência de atitudes socializantes, a juventude é facilmente atraída e atingida pela violência e criminalidade.
Não existem vagas minimamente suficientes nas creches, que possibilitem às crianças as garantias alimentares, o preparo comportamental que as preserve de estragos que já em tenra idade as condenam ao analfabetismo funcional.
Mais ainda, não se encontram espaços de convivência sadia e de prática de exercícios físicos, de esportes, de acesso à cultura e a cursos profissionalizantes. A qualidade de vida das periferias é assombrosa.
O sistema carcerário não pode ser somente torturador, muitos dos crimes puníveis com a detenção deveriam ser limitados e direcionados ao serviço social, ao trabalho comunitário, à prestação de serviços que custam caro à sociedade. Não se justifica, como ocorreu na penitenciária terceirizada de Manaus, que R$ 5.800 por mês por recluso sejam miseravelmente desperdiçados.
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