Estudos de economia e política são legião no Brasil. Neles, o País é lido de fora para dentro como se o sistema nacional não tivesse singularidades históricas e sociais. A morada com suas regras e seus costumes, por exemplo; a religião que foi um catolicismo exclusivista; o regime que foi monárquico e um sistema de relacionamentos pessoais indiscutíveis.
Num ensaio cuja contemporaneidade é patente, pois passamos todo o tempo falando disso, Oliveira Vianna examina “O papel dos governos fortes no regime presidencial” (publicado em 1923, no livro Pequenos Estudos de Psicologia Social) e sugere que um fator essencial de nossa “psicologia política” seria “a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracterizam a nossa índole cívica e definem as tendências mais íntimas de nossa conduta no poder”.
Eis uma pergunta essencial, pois o que o Brasil diz para mim é justamente essa capacidade de politizar tudo, menos as nossas relações pessoais e as suas éticas. É justo nessa fronteira entre o pessoal e o impessoal que jaz tanto o “você sabe com quem está falando?” quanto os autoritarismos negacionistas de todos os tipos. Da pandemia e da vacina sem nenhuma dúvida, mas igualmente dos foros privilegiados que julgam de modo diferenciado um mesmo delito. Com eles, a lei vale mais para uns do que para outros. É essa oscilação circunstancial e claramente pessoal que chama a minha atenção quando encaro o Brasil como pátria amada e objeto sociológico objetivo.
Devo observar que corrigir a generosa e ampla ética das relações sociais do Brasil por meio de um “estado forte”, como considera Oliveira Vianna, tem sido aplicado e está novamente no mapa. Corrigir a sociedade pelo Estado ou pelas leis é um dogma entre nós. E o dogma fala mais de uma ilusão do que de um remédio eficaz. O que ela revela é a separação relativamente absoluta entre “governo” e cultura ou estilo de vida. Tomando como vilão apenas os governos e o Estado, esquecemos convenientemente do nosso papel e, atribuindo tudo ao governo, Estado ou administração pública deixamos de olhar criticamente a nossa própria condição de fidalgos e “homens bons” - gente que fura todas as filas, inclusive as da vacina.
A segregação entre “casa e rua”, que até hoje nos persegue (porque a casa é inocente e a rua é bandida), esquece que os mais exaltados “governos fortes” e as ditaduras foram ou são exercidos por nossos colegas, amigos, compadres, parentes e subordinados. Nenhum governo conseguiu encarar o fosso entre a morada e a vida pública nas suas mais claras contradições, pois a casa é monárquica, a rua, republicana! Na casa existe uma dura hierarquia de gêneros e idades, na rua há uma surpreendente igualdade que, quase sempre, nos obriga a usar o “você sabe com quem está falando?” como um ritual de distinção.
Não deve ter sido por acaso que a passagem da monarquia para a República foi realizada por terríveis rompimentos com elos pessoais. Novas concepções de como se relacionar com Deus e de como limitar o luxo e o poder dos nobres tiveram um papel básico nas relações com aqueles que ocupavam um papel superior. Disciplinar funcionários do Estado foi fundamental no caso das primeiras burocracias - dos primeiros requisitos para mudar o feitio e o estilo de governar legal e politicamente para todos.
No caso brasileiro tivemos Estados fortes e fracos, mas pouco discutimos que a segmentação entre Estado e sociedade tem como consequência isentar a responsabilidade e o peso da sociedade junto ao Estado. No fundo, mantemos até hoje em separado entidades que estão entrelaçadas, posto que o Estado é a sociedade e os seus estilos de vida e vice-versa.
Conclusão: o que eu aprendi com o Brasil foi que a sociedade ainda não se entendeu com o Estado. O jogo do empurra-empurra de dizer que a sociedade estava errada no século 19 e de repetir a dose, usando o mercado e a política no século 20 e 21, tem que mudar. Tanto o Estado quanto nós, sociedade, temos de nos assumir como parte de um todo. Sem isso, o suicídio fica ainda mais perto...
PS: Quando um presidente eleito diz que “se tudo dependesse de mim não seria esse o regime” ele deixa passar o desgosto e a aversão com a democracia representativa, a qual ele jurou solenemente defender. É lamentável.
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