domingo, 2 de agosto de 2015

O circo e o Congresso

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comparação entre o Circo e o Congresso, ninguém negue, é altamente ofensiva aos profissionais do Circo e não tenho a mais remota intenção de ironizar. Pois bem; quando pensei que os humildes trabalhadores circenses viriam protestar contra a comparação desmerecedora, quem revelou uma indignação descabida e vitoriana foram os congressistas. Pior, porém; toda a imprensa, ao condenar o excesso de reação do Congresso, reconheceu, implicitamente, o direito dos congressistas se sentirem ofendidos. Quer dizer, a imprensa, como o Congresso, acha os trabalhadores de Circo indignos por definição. Que fique claro: entre o Palhaço e o senador, eu fico com o Palhaço. E seus irmãos, o trapezista, o mágico, até, relutantemente, o domador. Não conheço profissão mais visceral do que a do profissional de Circo. Boa parcela desses profissionais já nasce ali, naquilo. O malabarista é colocado no arame assim que anda, um domador não se improvisa, pois o leão não entra em cambalachos, o mágico leva anos aprendendo seus truques e o palhaço a vida inteira aperfeiçoando seus números. Além disso, os trabalhadores circenses são naturalmente obrigados a uma disciplina férrea um domador não entra bêbado numa jaula nem um trapezista sobe no voador com excesso de peso e o trabalho de Circo é obrigatoriamente solidário, não só nos números perigosos, mas também no conjunto dos trabalhos. A grande estrela, logo depois de seu número glorioso, já está nos bastidores ajudando humildemente a rolar um tapete e a carregar um tamborete. Além disso, o profissional circense faz, tradicionalmente, três sessões aos sábados e domingos, corre riscos permanentes e só ganha seu pão se corresponder ao interesse do público. E, final: eu nunca vi, em nenhum Circo, o netinho do Palhaço domando um tigre por recomendação, a sobrinha do trapezista engolindo fogo com pistolão, nem a amante do bilheteiro rebolando pra ser nomeada trapezista. E, claro, só por extrema gozação, algum Circo, algum dia, anunciará, como número extraordinário, um palhaço biônico.
Millôr Fernandes (1992)

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