quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Judeus, chaminés e o Brasil

Os judeus são basicamente debatedores. Entre eles, cada evento, pessoa ou objeto jamais é visto de um só ponto de vista. Daí, acentuam os estudiosos, as inúmeras disputas na vida e no pensamento judaicos, incluindo seus livros sagrados como o Talmude e a Torá. Historiadores desse povo disperso e com inserções diversas nos países para os quais foram forçados ou expulsos apontam essa extremada e dramática experiência de ser “o outro”, como um elemento básico dessas discordâncias e dessa afinidade com a dúvida. Afinal, ser o “povo eleito” é ser uma coletividade marcada por uma extremada alteridade...

O atual momento brasileiro está de tal ordem contaminado pela insensatez, ignorância, descrença e cinismo que vale a pena recordar uma velha anedota judaica que me foi contada em Nova York por um rabino e amigo querido. Estou, pois, consciente do meu plágio ou roubo, tão comum, aliás, no meio intelectual e jornalístico. Acentuo o ponto porque quando escrevemos não reconhecer a fonte denuncia o plagiário burro engolfado por sua vaidade. Essa turma que infesta, com pompa e circunstância, o curto cenário brasileiro.


Abe, um jovem judeu, foi ver o rabino:

— Rabi — pediu —, eu ficaria muito grato se o senhor me explicasse o Talmude.

— Claro — disse o mestre —, mas primeiro eu preciso fazer uma simples pergunta. Se dois homens saem de dentro de uma chaminé e um sai sujo e o outro limpo, quem é que se lava?

— O sujo! — respondeu Abe prontamente.

— Não, Abe! — disse o rabino debaixo do olhar espantado do jovem — Quem se lava não é o sujo porque ele se acha limpo. É justamente o limpo que pensa que está sujo. Agora, outra pergunta: se dois homens saem de uma chaminé, e um sai sujo e o outro sai limpo, quem se lava?

Abe deu um riso condescendente:

— O senhor acabou de me responder: o homem limpo, porque ele acha que está sujo

— Não, Abe — replicou o rabino — Cada um olha para si: o homem limpo sabe que não tem que se lavar, mas o sujo lava-se...

— Agora, uma pergunta final. Se dois homens saem de uma chaminé e um está sujo e o outro limpo, quem se lava?

Desta vez Abe fez uma careta de protesto. — Eu não sei, rabino. Poderia ser qualquer um, dependendo do seu ponto de vista.

— Não! Abe! — disse o rabino com firmeza — Se dois homens saem de dentro de uma chaminé, como é que um deles pode sair limpo? Ambos, obviamente, saem sujos e ambos se lavam.
Abe estava agora completamente confuso.

— Rabino, você fez exatamente a mesma pergunta três vezes, mas deu três respostas diferentes. Você está brincando comigo?
— Não, Abe — disse o Rabino — Eu nunca brinco com você. Isto é Talmude...

O aluno de doutorado que jamais leu um livro pergunta ao professor de Sociologia Política.

— Bebeto, me ensina como o Brasil deu no que deu.

— Primeiro eu tenho que lhe fazer uma ou duas perguntinhas — diz o mestre — Eis a primeira: dois ministros saem de uma chaminé, quem se limpa primeiro? O corrupto ou o honesto?

— Quem tem as costas quentes jamais pensa em se lavar — diz o jovem doutorando.

— O que você entende por “costas quentes”? — replica o professor.

— Eu estou pensando no cargo que aristocratiza e isenta, no modo de usar do cargo e no prestígio de quem o nomeou; em quem são os seus compadres, amigos e companheiros; o partido político a que ele pertence; se foi preso ou perseguido em alguma ditadura...

—É uma lista interminável... — pondera o professor doutor Humberto, interrompendo o aluno.

— E o pior é que eles pensam que esses infinitos recursos de poder podem ser corrigidos com leis, e não com uma honesta crítica dos seus costumes: dos limites de suas relações.

— Então, os dois saem sujos? —experimenta o professor.

— Não — responde o aluno — Ambos, sendo legais e caindo dentro da lei, não querem nem saber onde está a sujeira.

Eu dei uns socos uma vez na minha vida contra flamenguistas. Não eram torcedores, mas uma seita. Neste fim de semana, o Flamengo englobou o meu coração e o Brasil. Há muito mais nas identidades sociais do que pensa a nossa vã ideologia.
Roberto DaMatta

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