sexta-feira, 3 de março de 2023

Terroir nazi-fascista

Sommelier: “Hum… Notas feudais e chicotadas… com aroma bem acentuado de abuso e desprezo… é um terroir nazi-fascista. Esse vinho é Salton ou Aurora”. Ou da cooperativa Garibaldi, acrescento à fala da personagem no desenho do cartunista Céllus.

Algum parente meu precisou ser muito resistente para vencer a fome, superar os maus tratos e não virar comida de tubarão nas travessias em navios negreiros. E isso foi só uma prévia antes de apanhar pra trabalhar de graça. A “abolição”, assim, entre aspas, aconteceu em 1888, ou seja, já tinha muito preto que morava por aqui e não recebeu um pão dormido, pior que isso, era expulso sem direito nenhum para dar espaço aos imigrantes brancos enquanto se amontoava de qualquer jeito nos morros.

A família Salton, por exemplo, vinda da Itália, desembarcou em 1878, quando existia uma lei de embranquecimento do país. Através de cotas (vejam só) trazia-se imigrantes brancos que recebiam terras. O curioso é o imigrante chegar em 1878 e já em 1893, somente 15 anos depois, seu Antônio Salton já ter um comércio consolidado, com terreno amplo para plantação e elaboração de vinho. Então eu pergunto, para reflexão: se o Brasil tivesse dado terra e dignidade para o escravo preto, quem seria a família milionária dona de uma das maiores fábricas de vinho do país, a família do italiano imigrante ou os descendentes de escravos?


Os cerca de duzentos trabalhadores que foram libertados de trabalhos degradantes, análogos à escravidão na empresa terceirizada por vinícolas da serra gaúcha vieram em sua grande parte da Bahia, nossa Roma Negra. A imagem na capa do jornal é confusa, mas diz muita coisa. Estão sentados “no chão”, alguns descalços e sem camisa, sirenes ao fundo, cercados pela polícia de arma em punho, não os culpados, os criminosos abusadores/torturadores, não, mas os próprios trabalhadores, expostos mais uma vez, humilhados até os ossos, de certo exaustos, confusos de fome e medo.

Mas quando o assunto é a exploração do trabalho no Brasil, não há nada tão ruim que não possa piorar. A corregedoria da polícia militar investiga o envolvimento de PMs suspeitos de acobertar a prática, espancamentos e ameaças ao grupo. Antes mesmo de deixarem o RS nos quatro ônibus em direção à Bahia, numa viagem de mais de 2 dias, Pedro Augusto de Oliveira, o responsável pelo aliciamento, foi preso, porém, pagou fiança de 40mil reais, vai responder em liberdade e propôs uma “acordo” em que cada trabalhador receberia menos de 3mil reais por danos morais. Ué?! A liberdade dele vale muitas mil vezes mais que a dos outros? É escarnio que chama isso?

E a bagaça vai longe. O Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves divulgou nota dizendo que o problema é que “há larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. Então tá, o problema é o bolsa família e não os escravocratas. Ainda em Caxias do Sul o vereador Sandro Fantinel, do Patriota, fez discurso em tribuna recomendando que os empresários da região “não contratem mais aquela gente lá de cima, a cultura dos baianos é viver na praia tocando tambor, que empreguem os argentinos”.

As vinícolas Salton, Aurora e a cooperativa Garibaldi “repudiam e se solidarizam com os trabalhadores”, afirmam estarem tomado “medidas austeras na busca de soluções perenes”. Ufa! Olha, meus parabéns, fico bem mais aliviado. Ao menos agora, ao ler nas embalagens a indicação “contém 30% de suco de uva”, dá pra saber que o restante é um pouco de água (provavelmente desviada), sangue, suor e lágrimas. Vai, Brasél!

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