quinta-feira, 18 de junho de 2015

Em defesa do livro arbítrio (ou "Um grito de desabafo")


Em um país que falsamente se autodenomina laico e democrático, mas que se encontra inexoravelmente contaminado por leis arcaicas, fruto, sobretudo, de uma herança religiosa medieval, somos constantemente compelidos a refletir o quanto realmente nos encontramos em um triste estágio de subdesenvolvimento normativo.

O maior exemplo é a sublimação legal do mais importante direito que Deus nos deu: o livre arbítrio. Afinal, no estado da natureza, e pela mais importante concessão divina, o ser humano nasce livre para ser o único senhor do seu destino, fadado a dar satisfações unicamente a sua consciência.

Há algum tempo, um colega confidenciou ter experimentado, por determinação do destino, o mais dramático desafio a que um homem pode ser submetido, num dilema entre o amor e a consciência jurídica; entre o justo e o legal; entre o espiritual e o material.

Contou-me que sua mulher, incapacitada no leito do hospital, sentindo dores insuportáveis, com um câncer terminal que já havia retirado a dignidade de viver, implorou-lhe para que pusesse fim a seu martírio, mas não propriamente pela prática da eutanásia que lhe garantisse o direito de morrer com um mínimo de amor próprio, mas, sobretudo, pelo respeito a seu bem mais precioso: o livre-arbítrio.

Era uma mulher intelectualizada, com plena consciência de que não poderia contar com o Estado, que no Brasil não foi concebido para servir ao cidadão e sim para ser servido por este, ao contrário de outras nações, como a Suíça, onde existem até clínicas especializadas em viabilizar o legítimo desejo de uma morte digna (algo que os brasileiros só fazem com total naturalidade e amor, quanto se trata de um simples animal de estimação).

Restou a esta mulher, portanto, apenas recorrer àquele que lhe jurou amor eterno, até que a morte os separasse. E o desejo dele era atender ao pedido. Mas havia tantas implicações, que ficou mergulhado em dúvidas, não conseguia superar a rigidez da legislação criminal e o pesadíssimo sentimento de culpa que a formação religiosa atira sobre nossos ombros. Ele foi vacilando, se acovardou.

Mas ela insistia e foi assim até o final, quando o marido ainda conseguiu ouvi-la sussurrar as últimas palavras: ‘”Eu te perdoo, apesar de tudo”. Mas ele jamais conseguiu se perdoar.

Talvez fosse preferível optar pela ameaça de prisão injusta por um ato de amor (mas ainda assim por um tempo determinado), do que se sujeitar a uma condenação eterna por um ato de covardia.

Diante desse comovente relato, fiquei pensando que sempre é possível perdoar alguém, mas talvez seja realmente impossível perdoar-nos por qualquer ação ou omissão que tenha resultado em consequências graves. Com toda certeza, o perdão mais difícil é aquele que tentamos conceder a nós mesmos.

De toda maneira, o mais importante é que o Estado e a sociedade brasileira possam enfim amadurecer democraticamente, para propiciar aos cidadãos uma necessária evolução normativa que contemple o sublime respeito ao livre-arbítrio, elevando a dignidade humana ao patamar das conquistas mais preciosas a serem protegidas pelo nosso Direito, para que nenhum ser humano (apenas por ostentar a condição de brasileiro e se encontrar em solo pátrio) tenha de passar por tanto sofrimento, traduzido por uma dor que se encerra para aqueles que já se foram, mas nega a alegria da vida aos que ficaram.

Reis Friede

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