A experiência humana cada vez mais se entrelaça com as telas. De fato, em seus distintos formatos – do cinema à televisão, do computador ao smartphone –, a tela não se limita a uma mera função projetiva inerte, ela é, sobretudo, uma prótese de percepção que o ser humano progressivamente foi obrigado a internalizar em seu aparelho psicofísico. Essa ideia, que à primeira vista pode soar como uma abstração filosófica, revela-se como um objeto tátil que nos permitirá compreender as mutações profundas em nosso modo de pensar, sentir, aprender e interagir com o mundo.
É nesse terreno, onde a tecnologia se funde com a fenomenologia da experiência íntima humana, que a inteligência artificial (IA) e, em particular, os modelos gerativos de linguagem natural e de linguagem da natureza já se apresentam como protagonistas de uma nova era da cultura e da civilização. Esta nova arma criada por cientistas em seus laboratórios experimentais é capaz de redefinir a própria noção que possuímos de comunicação, ou mesmo a própria dinâmica da educação e do trabalho. Com tantos elementos distintos na equação, finalmente podemos novamente mencionar, sem o constrangimento típico, as urgentes lutas sociais e políticas que precisamos reinaugurar.
Historicamente, a tela tem sido um instrumento poderoso na moldagem de percepções e na disseminação de ideologias. Desde a invenção do cinema, no alvorecer do século 20, testemunhamos a capacidade intrínseca dessa “nova mídia” de mobilizar as massas para processos de lutas através do estímulo ideológico, sempre ao redor de uma sensibilidade coletiva projetada como filmes-modelos. O cinema, em sua gênese, não foi apenas uma forma de entretenimento; ele se estabeleceu como um vetor de induções psíquicas, contribuindo tanto para ideologias revolucionárias (como as bolcheviques) quanto contrarrevolucionárias. Sua influência foi palpável na integração estratégica do império do capitalismo americano e, de forma ainda mais sombria, na adesão da população alemã ao nazismo.
A projeção de imagens em movimento, apresentadas em telas como personificação do mercado e de seus líderes políticos, exerceu um controle massivo. Esse controle espetacular foi capaz de reconfigurar a percepção visual e, por consequência, a própria realidade percebida. Aqui, a existência humana se entremeava com a existência da cultura fílmica. E, com a transição do suporte analógico para o digital, o cenário se tornou exponencialmente mais complexo.
A dita pós-modernidade, marcada pela ubiquidade das telas e pela velocidade da informação, intensificou esse processo de expropriação e orientação artificial da cognição. Os recentes ataques neofascistas às democracias globais, por exemplo, revelam um investimento estratégico justamente nas mesmas produções audiovisuais perversas – as fake news, os negacionismos, as montagens que compartilham envolvendo desde figuras bíblicas até políticos populistas – e novamente levaram ao extermínio partes da população, principalmente no Brasil e em sua aberta campanha ao genocídio de classes desfavorecidas. A mensagem direcionada ao gerenciamento ideológico e ontológico às sociedades açoitadas pelo subdesenvolvimento, como a nossa, é implacável e demanda um grande aparato manipulador que intermeia tais ataques, este é o papel daquilo que conhecemos com “a mídia”.
Essa rede de organização política da informação, facilitada pela onipresença das telas, demonstra o quão profundamente nossa percepção pode ser constrangida por estímulos cuidadosamente orquestrados, eles têm caracteres libidinais, consumistas, de pertencimento, de estilos e opções personalíssimas como a moda, a gastronomia, a estética corporal etc. É nesse contexto entre a instrumentalização das nossas telas que há muito trava-se uma guerra pelo poder. E aqui, a IA é, antes de tudo, uma potencial forma de contra-informação, um modelo que, se olhado em sua “essência”, não será apenas instrumento e/ou dispositivo de intensificação da desigualdade, mas uma oportunidade de reformas estruturais planetárias. É esse o risco e o desespero que podemos pressentir entre os comportamentos extremista e irracionais da elite governante e econômica.
Ferramentas que atuam com base em deep learning (aprendizado profundo de máquina não supervisionado) orientadas por redes neurais artificiais (RNAs) processam informações ininterruptamente e autonomamente; elas as criam, as moldam e as disseminam em uma escala e velocidade sem precedentes. O papel humano torna-se limitado em certos processos de uma rede neural. Em certo ponto, a mente humana e a mente artificial se desacoplam, e apenas uma é capaz de se mover com expertise neste plano de uma realidade totalmente digitalizada.
É um fenômeno que exige nossa mais profunda atenção, pois aqui ainda sobressaem os riscos e assédios que observamos diariamente, ou seja, há um anseio do poder neoliberal em dominar tal tecnologia utilizada como um bem voltado à produtividade. Porém, também há um campo de forças insurrecionais que sequer o próprio sistema de controle e produção pode gerir, impedir, ou mesmo judicializar.
A questão não é mais se a IA influenciará a humanidade, mas como ela delineará as qualidades políticas, eleitorais, educacionais, subjetivas, institucionais, diplomáticas e bélicas nos próximos anos. Os dias atuais nos confrontam com uma realidade onde a comunicação política se transformou em um campo de batalha, e a “guerra de vídeos” deflagrada recentemente pela esquerda nacional, provisoriamente intitulada “Nós contra eles”, é um exemplo contundente dessa nova dinâmica. De fato, nossa única possibilidade de uma instrumentalização efetiva a um processo revolucionário, o único “revide” que nos sobrou e que tanto aguardávamos efetivar, após séculos de exploração e injustiça. São essas as condições materiais de desencadeamento de novas gramáticas de lutas de classes e, como toda nova ação insurgente, novas dinâmicas devem entrar. Fomos deveras provocados, na captura de nosso querer e na segregação de nossas ações solidárias.
Diante desse cenário tecnológico, apenas meia dúzia de vídeos curtos, mas que escandalizam o papel do Congresso Nacional e da estupidez da classe dominante, já fez solavancar e aterrorizar o status quo tanto da oposição quanto dos veículos de imprensas líderes. Recorrer à IA para defender a taxação dos super-ricos, o fim da escala 6×1, maior acesso à distribuição de recursos e serviços sob novas figurações de produto audiovisuais democráticos, acessíveis e esclarecedores demonstrou que podemos recorrer à linguagem fílmica que ocupa as redes sociais, e isso nos sinaliza para a urgência de dominar esse novo terreno da comunicação política, onde a direita tem historicamente trafegado com maior desenvoltura.
O novo uso da IA para uma causa, para reacender a militância em torno de uma bandeira socialmente relevante, é um tipo de inflamação popular que não será mais contido. Uma característica relevante dessas novas produções é que não há identidades de militantes, não é possível sequer atribuir a um ser humano a confecção dos vídeos. De certo, digitamos na caixa de texto a narração da cena, os personagens, o conteúdo (mesmo que abstrato), mas são as próprias redes neurais que constroem o vídeo, sonorizam, editam, criam efeitos especiais, transmitem uma mensagem valiosa. Sequer o Partido dos Trabalhadores (PT) pode ser identificado como autor e promovedor do movimento, até porque o governo é de viés legalista e neoliberal. A impossibilidade de acusar indivíduos de subversão pela natureza mesma dessa produções não permitirá que a justiça, a política ou qualquer órgão estatal seja capaz de punir, incriminar. Abre-se uma era de anarquismo comunicacional, e os projetos de regulamentação da IA são equivocados tanto do ponto de vista técnico quanto conceitual.
Os vídeos divulgados por militantes de esquerda, e suas redes neurais, cumpriram um efeito simbólico e mobilizador. Sem precisar apelar às retóricas de ódio e acusações agressivas contra representantes específicos, ali apresenta-se estilisticamente a imagem-movimento de um antro degradado de acordos de políticos que se julgam astutos e cujos mecanismos de corrupção não podemos contestar. Acontece que, para nós, temos um passado literário e científico produzido por grandes figuras do pensamento, que nos legou a potência de criar maior impacto, capaz de criar compreensões mais fortalecidas da natureza humana, da imensidão das formas de existência e resistência. A IA tem um imenso poder duplo: pode tanto emancipar quanto manipular a construção de consensos, levando à polarização radical.
Neste ponto, é papel da universidade renovar seus votos de compromisso com a vida. Para as academias não resta alternativa a não ser imprimir o máximo de facilitação entre as sociedades e esta nova fonte de saber-poder. Se insistir em estratificação e burocratização, as universidades do mundo enfrentarão formas ostensivas de contestações, na mesma moeda que enfrentarão os governos, o latifúndio agrário, os regimes e escalas de trabalho, a participação aos bens públicos e aos direitos fundamentais. As academias precisam fazer valer o papel que há tanto lhe foi confiado, mesmo que a atual tecnologia social de suas ações não as permitam cumprirem tal magnânima missão.
É nesse cenário de incertezas e de um poder tecnológico em constante expansão que a IA, paradoxalmente, pode se apresentar como esta “fresta para a revolução”. Não se trata de uma revolução nos moldes tradicionais, com levantes populares, barricadas, assaltos com milícias armadas e mudanças abruptas de regime, mas de uma mensagem oculta, silenciosa e íntima, que torna o sistema dominante o arquétipo maior do inimigo. No que tange às relações de poder e saber, outra dimensão discursiva será produzida pelas redes neurais, revitalizando conceitos e fenômenos, histórias de lutas modernas e antigas, em que novamente nos deparamos com a opressão das classes oprimidas e que sempre apostaram na mobilização. Agora, a informatização das lutas permite um caminho promissor.
Se a IA é capaz de gerar e disseminar narrativas em escala massiva, ela também pode ser utilizada para desconstruir narrativas hegemônicas e para amplificar vozes dissidentes. A atual ação da esquerda nacional é um prenúncio disso: a apropriação de ferramentas tecnológicas para disputar a narrativa e mobilizar a base, mesmo que com recursos limitados, pode ser uma nova forma de marginalismo heroico, o uso estratégico e consciente para fins de transformação social sob um rígido suporte popular. A IA, nesse sentido, é um catalisador de novas possibilidades, de vozes periféricas, excomungados, amaldiçoados e portadores de doenças psíquicas. Um campo de disputa onde o futuro da luta social e mental pode ser redefinido. A história, que parecia ter chegado ao seu fim, pode estar apenas começando, impulsionada por essa nova força tecnológica que, se bem utilizada, pode nos levar a um mundo mais livre, solidário e igualitário.
A USP, construída sobre a excelência na ciência, cultura, arte e filosofia, depende da nossa capacidade de questionar o mundo com abertura, desprendimento, inteligência e coragem. A ocupação desta universidade, por décadas, de grandes expoentes do intelectualismo nacional, permite que derivemos a clareza de propósito e a coerência ética para que a tecnologia atual sirva à emancipação humana, e não à sua subjugação. Que a história, que se desenrola diante de nossos olhos, cujo materialismo é a própria abstração do código, seja um instrumento a serviço dessa construção coletiva.
A “fresta para a revolução” que a IA pode abrir não se concretizará sem um esforço consciente e coletivo para garantir que essa tecnologia seja desenvolvida e utilizada de forma transparente e responsável, e, neste ponto, almejamos uma democracia direta, de participação livre e aberta de todas(os) os brasileiros(as). O dispositivo da IA pode realizar a aproximação entre tudo o que foi institucionalizado e o interesse público, o que nos faz prescindir de representação política, dos poderes republicanos e, principalmente, de uma polícia militar e de forças armadas descoladas da realidade do mundo. A verdadeira revolução, portanto, é um projeto de sociedade mais inclusivo, pacífico e democrático. É um convite à intervenção, a uma apropriação estética dessa ferramenta poderosa, para que a história não se repita daqui em diante, ou que se repita sem os velhos e boçais personagens, agora satirizados e humilhados por jovens rebelados sem qualquer inserção ou reconhecimento social, profissional e intelectual.
A verdadeira revolução não será travada nas ruas, mas nas redes neurais. A IA representa uma oportunidade histórica de democratizar o poder da informação e dar voz aos silenciados. Cabe à universidade, e especialmente à USP, liderar esse processo de forma ética e responsável. O futuro da democracia pode depender de nossa capacidade de transformar essa tecnologia em instrumento de emancipação, não de opressão.

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