Aqui, na abundância, não é fácil entender essa “tontura da fome” que Carolina descrevia, a fome extrema até o corpo ficar a tremer, até o cérebro desligar para se poupar à falta de energia, deixando uma pessoa quase sem raciocínio. A única coisa que funciona é o instinto, a procura incessante por alimento, sem que o cérebro tenha sequer a capacidade de avaliar o risco/benefício, como o de ir para uma fila de distribuição de comida ou de água sujeito a ser baleado. Mas qual é a alternativa?
Aqui, na abundância, não faltam ecrãs onde assistimos em direto à fome em Gaza e depois gastamos tempo e recursos a discutir se as fotos são verdadeiras ou não.
O grau de alheamento é tal que Benjamin Netanyahu consegue dizer, com o ar mais sério do mundo: “Não há fome em Gaza.” E até Donald Trump lhe responde: “Aquilo não se pode fingir.”
Segundo o Ministério da Saúde palestiniano, 150 pessoas morreram à fome, um número que inclui 88 crianças; e, segundo as Nações Unidas, cerca de mil pessoas foram assassinadas enquanto esperavam nas filas de distribuição de comida.
Os reféns ainda cativos (50, sendo que vivos já serão apenas 20) já não são motivo, há muito, para justificar a barbárie – aliás, as famílias dos reféns juntaram-se aos pais dos soldados e a milhares de pessoas em protestos, na semana passada, em Tel Aviv, contra Benjamin Netanyahu. Exigem o fim da guerra e o objetivo primeiro que falta cumprir: trazer os reféns para casa.
Por outro lado, duas das principais organizações de direitos humanos israelitas, as ONG B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos, acusam, pela primeira vez, Israel de estar a cometer genocídio. Dizem que, nestes dois anos, existiu um “ataque claro e intencional contra civis para destruir um determinado grupo”. E pergunta a diretora da B’Tselem: “O que fazemos perante um genocídio?”
Não é de forma leviana que se usa a palavra genocídio e, segundo a sua definição no Direito português, inclui: “Homicídio de membros do referido grupo; Ofensa grave à integridade física de membros do grupo; Sujeição do grupo a condições existenciais ou a tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, aptos para provocarem a sua destruição, total ou parcial; Transferência forçada de crianças desse grupo para outro; Imposição de medidas destinadas a impedir a procriação ou os nascimentos no grupo.”
O que irá fazer a Europa? França acabou de anunciar que vai reconhecer o Estado da Palestina e é o primeiro país do G7 e o primeiro membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas a fazê-lo. Espanha, Irlanda, Suécia estão entre os dez países dos 27 da União Europeia que já o fizeram. Em julho, PSD, CDS, Chega e IL chumbaram uma proposta para Portugal também o fazer.
No início desta semana, nas Nações Unidas, discutiu-se a solução de existência de dois Estados. Estados Unidos e Israel boicotaram a conferência da ONU, promovida por França e pela Arábia Saudita. Israel, com a sua crueldade, pode estar a empurrar o mundo para o apoio à criação do Estado palestiniano. Mas, como bem resumiu Donald Trump, falando sobre Emmanuel Macron: “O que ele disser não importa. Não vai mudar nada.”

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