quinta-feira, 31 de maio de 2018

Tempos interessantes

Tenho inveja de quem vive fora do Brasil — mas longe, bem longe mesmo. Deve ser sensacional acompanhar a história recente do país de um ponto de vista seguro, assim como nós acompanhamos, daqui, a erupção do Kilauea, no Havaí:

— Olha aquela coluna de lava!

— Nossa! Está destruindo as casas...!

— Acabou com as estradas!

— Que magnífico espetáculo da natureza!

De 2013 para cá, o Brasil vive uma sucessão de fatos espetaculares, todos de altíssima voltagem. Morando aqui, porém, fica um pouco mais difícil apreciar o privilégio de viver num momento histórico, e muito mais fácil entender o significado da velha maldição chinesa:

— Que você viva em tempos interessantes!

Deve ser muito reconfortante acompanhar o noticiário brasileiro durante uma hora por dia, e depois voltar para as notícias locais num mundo de tédio. O “Finland Today”, por exemplo, destacava nas manchetes de ontem que a bandeira nacional finlandesa fez cem anos, e que a universidade de Jyväskylä começou um programa piloto com o Kennel Club para que cachorros sirvam de companhia aos estudantes durante as aulas. Já a versão suíça do “The Local” abria com a história de um casal de aposentados que jogou a toalha após quatro anos de desentendimento com a administração do cantão: depois de gastar 27 mil francos com a pintura da casa, Willy e Marie Zysset receberam uma multa de 100 mil francos, porque as autoridades não gostaram da cor escolhida. Os dois se cansaram de discutir com burocratas e resolveram se mudar para Ngoulemakong, na República dos Camarões, onde ela tem família. No “Toronto Sun”, do Canadá, entre um mix variado de esportes, negócios e shows, fica-se sabendo que um jabuti, um lêmure e um macaco foram roubados do zoológico de Ontário.


Já não sabemos mais o que é viver com notícias que conseguimos esquecer ao virar a página. As nossas notícias nos acompanham o dia inteiro, nos assombram, se metem nas nossas conversas ao longo do dia, vão para a cama conosco. Infestam as nossas redes sociais. Estão no escritório, na praia, no almoço com os amigos, no táxi para casa, no jantar com a família. Lemos, vemos, ouvimos, falamos, discutimos — e nem por isso chegamos mais perto de entender o que está acontecendo, ou de alcançar algum consenso.

Greve dos caminhoneiros, por exemplo.

Há uma semana não se fala em outra coisa nesse país, e embora todos os brasileiros tenham subitamente virado especialistas em transporte de carga, ninguém sabe exatamente como aconteceu o que aconteceu, quem estava por trás ou não estava, quem se infiltrou ou deixou de se infiltrar.

A única coisa que ficou clara é que nunca se viu um governo mais despreparado para lidar com uma crise.

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Comecei a temporada a favor dos caminhoneiros, uma das categorias mais sacrificadas de um país rico em categorias sacrificadas. É difícil não se solidarizar com pessoas que correm toda a espécie de riscos para que o país continue funcionando: gente que cumpre jornadas estafantes à base de rebite, que enfrenta estradas em péssimas condições, que não tem a menor segurança no trabalho.

Também é difícil concordar com aumentos diários de combustível — nem tanto pelos aumentos em si, que podem até ter uma sólida justificativa econômica, mas pela insegurança que traz uma maluquice dessas.

E é fácil, muito fácil, fechar com quem peita esse governo incompetente, e dá um berro na cara dozômi.

Aos 20 anos, eu teria corrido para a estrada mais próxima, com o peito em festa e o coração a gargalhar.

Infelizmente deixei de ter 20 anos há muito, muito tempo.

Ainda tenho um lado perverso que gostaria de um país em full stop só para ver no que ia dar; se eu estivesse naquele lugar bem distante lá do primeiro parágrafo, até torceria para isso. O diabo é que, com a minha idade, já não preciso pensar muito para entender que o resultado não seria uma simples freada de arrumação ou uma semaninha de desconforto, mas um caos de longo alcance.

Conservo a minha simpatia pelos caminhoneiros, a respeito de quem li no Facebook, horrorizada, as coisas mais preconceituosas, escritas por pessoas que se pretendem descoladas e progressistas; mas a minha simpatia pelo movimento acabou quando estradas foram fechadas, quando pessoas foram seriamente prejudicadas e animais entraram em sofrimento.

Não dá para concordar com uma greve — ou um locaute, ou o que quer que tenha sido ou ainda seja este movimento — que imponha tanto prejuízo e tormento à população; não dá para concordar com chantagem e com ameaças.

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Do lado positivo, passamos a discutir, enfim, o equívoco que foi o sucateamento da malha ferroviária, e o erro que é manter um país tão dependente de uma única categoria. Se a nossa memória coletiva não se apagar assim que o abastecimento for restabelecido, o transporte de cargas entrou definitivamente na pauta nacional — de onde, aliás, nunca deveria ter saído.

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Lula enchia a boca para falar da “herança maldita” de FHC, mas a verdadeira herança maldita quem recebeu foi Temer — que, para nosso azar, provou mais uma vez que não tem nem moral nem competência para lidar com um abacaxi desse tamanho.

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