Nada numa sociedade é mais degradante que a fome. O Brasil soma dois Portugais de famintos, mas não tem política social de enfrentamento à insegurança alimentar. Jair Bolsonaro foi a Nova York (EUA) e Boa Vista (RR) dizer que acredita em Deus, respeita a Constituição, defende a família tradicional (em evidente referência homofóbica) e é leal ao povo. Mentiu à quarta potência. Qualquer líder que conjugue fé, respeito às leis, defesa dos lares e lealdade à população agiria pela vida, não em prol da morte. Em ano e meio de pandemia, o chefe do Executivo pregou desobediência ao protocolo de proteção contra a Covid-19, recomendou medicamentos ineficazes, não visitou um hospital, jamais se ocupou da urgência alimentar. Age diuturnamente ora para proteger parentes e aliados investigados por um leque de crimes, ora por mais uma temporada no Planalto.
Nesta semana, o coletivo Movimentos, de jovens moradores de favelas, apresentou resultados de uma pesquisa sobre os impactos da pandemia na Maré, no Complexo do Alemão e na Cidade de Deus. Metade dos entrevistados precisou de ajuda para sobreviver à temporada; um terço recolheu ou fez doações. O Estado despreza, a sociedade civil acolhe. A Coalizão Negra por Direitos vai estender a campanha Tem Gente Com Fome, que em seis meses arrecadou R$ 18,9 milhões, distribuiu cestas básicas a mais de 100 mil famílias, alimentou meio milhão de brasileiros. Nesta semana, por iniciativa da subprocuradora aposentada Deborah Duprat, um Tribunal Popular da Fome acusou e julgou o governo por violação ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas.
A pedido da Ação da Cidadania, a OAB Nacional ajuizou no STF ação para obrigar o governo Bolsonaro a implementar políticas públicas de combate à fome, em aliança com estados e municípios. A ONG, fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, morto em 1997, atua desde os anos 1990 em campanhas contra a miséria. Em 2007, chegou a suspender por uma década a doação de alimentos, em decorrência da política social, Bolsa Família à frente, que tirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU. A mobilização foi retomada em 2017, com o agravamento da crise social após a recessão aguda do período 2014-2016. No ano passado, com a pandemia, a demanda foi inédita.
— Desde março de 2020, arrecadamos R$ 150 milhões, suficientes para distribuir 30 mil toneladas de alimentos ou 150 milhões de pratos de comida a 12 milhões de brasileiros — informou Kiko Afonso, diretor executivo da entidade.
Na ADPF 885, a OAB aponta violação de direitos constitucionais pelo governo no enfrentamento à fome. Solicita ao STF retomada e ampliação do auxílio emergencial de R$ 600, reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e das demais instâncias de participação social extintas, recomposição orçamentária, aplicação de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos, formação de estoques públicos de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para aplacar escassez de oferta e disparada dos preços. O relator, ministro Dias Toffoli, deu dez dias para o governo se pronunciar.
Enquanto isso, o presidente age para desmontar política social consolidada, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, avaliza gambiarras fiscais com objetivo eleitoral. A Medida Provisória do Auxílio Brasil, que rebatizará o Bolsa Família, alerta o economista Francisco Menezes, da ActionAid, não traz dotação orçamentária, número de beneficiários nem valor do repasse, e insiste na inscrição por aplicativo de smartphone, em detrimento do sistema de assistência social capaz de alcançar os mais vulneráveis. A Petrobras, que lucrou R$ 42,9 bilhões no segundo trimestre e pagará R$ 31,6 bilhões em dividendos a acionistas, União incluída, separou R$ 300 milhões para subsidiar gás de cozinha para famílias pobres. De Band-Aid para aplacar hemorragias, vive o governo brasileiro.
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