segunda-feira, 14 de julho de 2025

Nostalgia do futuro

Podemos ousar sentir nostalgia, saudades do futuro? Ansiar por resgatar no futuro o passado depredado pelo insano progresso? Buscar um futuro ancestral, tal qual o anunciado por Ailton Krenak?

Para incentivar mudanças de comportamento, o Sistema Nacional de Trânsito lançou em 2025 a campanha “Desacelere. Seu bem maior é a vida.”

O Rio Saracura corre debaixo do asfalto da Avenida 9 de Julho em São Paulo e é afluente do Rio Anhangabaú, igualmente canalizado. Enquanto governador, Ademar de Barros construiu uma passagem no Vale do Anhangabaú sob a Avenida São João, conhecida como “buraco do Ademar”. Os bueiros, ao invés de darem vazão às águas das chuvas, davam vazão ao rio, que inundava a passagem subterrânea, rebatizada “banheira do Ademar”. Hoje, São Paulo inteira é uma banheira; os quintais foram todos cimentados, porque terra virou sinônimo de sujeira.

A imagem abaixo, de autoria de Jose Fujocka, resgata o Rio Saracura. Impossível?


Na Coreia do Sul, o Rio Cheonggyecheon, que havia sido coberto por uma avenida de 16 metros de largura, corre hoje a céu aberto. 

Nasci no início dos anos 1950, antes da indústria automobilística se instalar no país. Morava no Bom Retiro, na Rua João Kopke, 108; nas imediações da várzea formada pela confluência dos rios Tamanduateí e Tietê. A poucas quadras do Jardim da Luz, a rua ainda não era asfaltada. Na época das águas, em janeiro, os rios transbordavam e a molecada da região, por algum trocado, atravessava os pedestres de barco de um lado para o outro da rua.

Nos anos cinquenta, São Paulo era toda recortada por trilhos de bondes elétricos. O cobrador andava pelo bonde, segurando as notas, separadas por valor, dobradas de comprido entre os dedos, 1, 2, 5, 10… cruzeiros, formando um leque. Nos bondes abertos, os adolescentes, andando alguns passos atrás do cobrador, conseguiam evitar pagar a passagem. O bonde da Casa Verde, que partia do Largo São Bento, passava pela comercial Rua José Paulino. De noite, na área residencial do Bom Retiro, a criançada brincava no meio da rua, enquanto seus pais arrastavam as cadeiras e ficavam conversando com os vizinhos na calçada.

Em 1954, a Cidade de São Paulo comemorava seu IV Centenário com os lemas “São Paulo não pode parar” e “A cidade que mais cresce no mundo”. Foi então que, em 1956, veio o Plano de Metas, a construção de Brasília, a indústria automobilística e a televisão, que fizeram com que os adultos recolhessem suas cadeiras da calçada e seus filhos do meio da rua.

No início, as pessoas ainda não estavam familiarizadas com os automóveis. Nas escolas, os guardas de trânsito passavam uniformizados pelas salas de aula para ensinar a meninada a atravessar a rua, vermelho, amarelo, verde, “pare, olhe, viva!” E foi uma febre, os automóveis começaram a encher e encher as ruas até conseguirem congestionar toda a cidade.

O Minhocão foi construído durante a ditadura militar, mergulhando a região central da cidade de São Paulo em sombras distópicas dignas de figurarem no clássico Blade Runner. Com o fim da ditadura, o nome do elevado foi alterado de Costa e Silva para João Goulart. Há projetos para transformar definitivamente o elevado em parque público. A prefeitura está pretendendo abrigar automóveis para deslocar “o lixo humano” que habita debaixo do Minhocão. Melhor seria removê-lo de vez e restaurar os jardins que foram removidos para dar lugar ao “progresso”.

Hoje me pergunto, para que tantos automóveis assim? Veja o que você ganha sendo um feliz proprietário de um veículo automotor: Ter que comprar um carro, de preferência um que possa fazer o seu vizinho ficar boquiaberto, de queixo caído.

Arranjar um estacionamento, de preferência coberto.

Licenciar o carro e pagar IPVA anualmente.

Pagar seguro do automóvel, pelo menos contra terceiros.

Encher o tanque regularmente (recomenda-se procurar um posto que forneça combustível não adulterado).

Limpar e lavar o carro.

Trocar o óleo e fazer a manutenção regular do veículo.

Lidar com problemas mecânicos, câmbio, correias, superaquecimento,
 
vazamentos, escapamento, pane elétrica, bateria, pneus etc.

Enfrentar trânsito pesado.

Encarar malcriação de outros motoristas e até de pedestres.

Aproveitar para descarregar a sua raiva do patrão, de seu cunhado e daquele vizinho mal-educado.

Estar sujeito a fechadas, acidentes, consertos, funilaria e pintura do automóvel.
Receber multas devidas e indevidas, que você pode recorrer, mas serão indeferidas.

Aturar vendedores, pedintes e flanelinhas nos semáforos.

Ter que lidar com guardadores compulsórios, às vezes agressivos, ameaças e danificação do veículo.

Correr risco de furto do automóvel, roubo e assalto.

Poluir o ambiente etc. etc.

Na universidade, nos empenhamos para entender a violência no trânsito, decompondo a ordinária taxa de mortalidade por acidentes em dois indicadores, veículos por habitante e óbitos por veículo. Os resultados da nossa pesquisa mostraram que, tanto no Brasil, como no exterior, os poucos automóveis que transitam em regiões com frotas reduzidas também saem matando a esmo, até em maior número. A interação entre veículos automotores e pedestres revela-se um aprendizado que, naturalmente, leva tempo; mas também pode ser induzido por políticas públicas.

De qualquer forma, não seria melhor usar o transporte público e poder contar com os serviços profissionais dos “motoristas particulares”, conversar com os outros passageiros ou simplesmente espairecer despreocupadamente? Se quiser, você também pode ficar ouvindo as conversas descartáveis entre passageiros avulsos e as histórias que rolam entre conhecidos, sair um pouco da solidão reservada aos motoristas sem passageiros e da convivência regular com os seus familiares. Preste atenção e recarregue-se emocionalmente com as expressões e comentários autênticos das crianças. Há motoristas de ônibus que conhecem os hábitos de seus costumazes clientes e chegam a chamar a sua atenção quando, distraídos, no ponto, correm o risco de perder a viagem.

Por fim, vale lembrar que tanto o incremento como a gratuidade no transporte público podem e deveriam ser financiados, via impostos, pelos felizes proprietários dos veículos automotores privados, que, de quebra, vão ficar muito agradecidos em ver o trânsito descongestionado. Passe livre, sem catracas!

Porém, melhor que transporte público é andar de bicicleta; e melhor que andar de bicicleta só mesmo andar a pé, apreciar o entorno, fazer o caminho passo a passo, descobrir uma vila que você nunca tinha notado antes… E você ainda vai ganhar tempo (e dinheiro), porque não vai mais precisar frequentar aquelas academias de ginástica em que as pessoas pedalam e andam em esteiras sem sair do lugar.

Paris, a Cidade Luz, agora é verde. As vagas para estacionamento foram removidas e, desde 2020, foram criados 84 quilômetros de ciclovias. Automóveis são hoje usados dentro da capital em apenas 4,3% dos deslocamentos, ficando atrás das bicicletas (11,2%), transporte público (30%) e, oui, oh là là, jornadas a pé (53,5%)!

Nenhum comentário:

Postar um comentário