Contudo, uma análise rigorosa e desapaixonada dos dados empíricos disponíveis revela uma contradição fundamental, que podemos designar como o “Paradoxo da Letalidade”. As políticas vendidas sob a promessa de mais segurança, na prática, acabam por gerar mais violência e morte.
Para compreender a gravidade da proposta do Chega, é preciso dissecar os seus detalhes. O projeto de lei não se limita a dar mais liberdade aos agentes para usarem as suas armas; ele busca redefinir a própria filosofia do uso da força. Ao propor a “eliminação da excecionalidade” no recurso a armas de fogo contra pessoas, o partido pretende normalizar o que hoje é, e deve ser, um último recurso.
A proposta vai mais longe, ao estipular um conjunto de circunstâncias em que o uso da arma se tornaria obrigatório. Um exemplo particularmente alarmante é a situação em que um agente enfrenta um grupo de três ou mais agressores. Esta cláusula ignora a complexidade das situações de confronto, removendo o discernimento do agente e substituindo-o por uma regra automática que pode escalar desnecessariamente um conflito, inclusive com desfecho fatal que poderia ter sido evitado. Adicionalmente, o projeto propõe a dispensa da advertência prévia sempre que esta possa colocar o agente em risco, mais uma vez diminuindo as barreiras para o uso da força letal.
A narrativa que sustenta estas medidas é a de que a polícia portuguesa estaria paralisada por uma “cultura de hesitação”, o que encorajaria a criminalidade e a desordem social. O objetivo declarado é “recuperar a autoridade das forças de segurança”. Esta retórica, no entanto, não se baseia numa análise das necessidades reais da segurança em Portugal, mas sim na importação de um guião ideológico que vê na força bruta a principal ferramenta de governação.
A proposta do Chega não é um fenómeno isolado. Ela espelha, com notável fidelidade, as políticas e discursos de seus homólogos internacionais. Nos Estados Unidos, país onde a atuação das forças de segurança é reconhecida como sendo extremamente violenta e com vários casos de uso excessivo de armas de fogo por policiais, o Partido Republicano tem consistentemente trabalhado para desmantelar as regulamentações sobre uso de armas. Sob a bandeira da Segunda Emenda, governadores como Ron DeSantis na Flórida aprovaram leis de “porte sem permissão” (permitless carry), que eliminam a necessidade de licença e treino para portar armas ocultas em público. A nível federal, senadores republicanos usam manobras regimentais para bloquear qualquer tentativa de controlo de armas, garantindo que a política nacional seja refém de uma minoria pró-armas. Simultaneamente, a administração Trump propõe mudar a lei para permitir que pessoas com antecedentes criminais possam adquirir armas de fogo. A ideologia subjacente é a da liberdade individual absoluta, onde o direito de portar uma arma é visto como uma defesa não só contra criminosos, mas contra uma potencial tirania do Estado, que paradoxalmente existiria através do uso de força policial, com uso de armas de fogo. No Brasil, o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro e os seus aliados têm travado batalhas legislativas com o objetivo de conceder uma ampliação das “excludentes de ilicitudes” para uso de armas de fogo por forças de segurança, e também para reverter o Estatuto do Desarmamento. As propostas incluem a possibilidade de uso de força letal por forças policiais em situações de “risco iminente de conflito armado”, sem especificar o que seria enquadrado como tal, a redução da idade mínima para a compra de armas para 18 anos, a expansão do porte para novas categorias profissionais e a contestação de decretos presidenciais mais restritivos, sob o argumento de que ferem a “liberdade individual e a legítima defesa”. Na Itália, a Lega, liderada por Matteo Salvini, promove a flexibilização das leis de armas sob a bandeira da “tradição” e da “cultura”. Uma proposta de lei apresentada pelo partido busca duplicar a potência permitida para armas de “livre venda” (que não exigem licença de porte), facilitando o acesso a armas mais letais para defesa pessoal. Paralelamente, a Lega foi a grande impulsionadora de uma reforma da lei da “legítima defesa”, que visa proteger legalmente os cidadãos que usam armas contra invasores, incentivando, na prática, o armamento residencial. Ao mesmo tempo o governo de Giorgia Meloni aprovou decreto, com apoio da Lega, que prevê uma ajuda de 10 mil euros para integrantes de forças policiais que forem processados por atos de violência cometidos no exercício das suas funções. A convergência é clara: em todos estes casos, a resposta para a percepção de insegurança não é o investimento em políticas de prevenção, inteligência ou coesão social, mas sim a delegação da força letal, seja para o Estado (polícia) ou para o indivíduo (cidadão armado).
A premissa central da proposta do Chega, de que uma polícia mais agressiva e letal gera mais segurança, é frontalmente desmentida pelas evidências empíricas. Estudos rigorosos sobre a atuação policial em contextos de alta violência demonstram que não há uma correlação entre o aumento da letalidade policial e a redução dos índices de criminalidade.
Um estudo aprofundado sobre a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, concluiu que não só não havia uma associação negativa, como em alguns casos encontrou-se uma correlação positiva: um aumento nas mortes causadas pela polícia estava associado a um aumento subsequente nos homicídios e roubos na mesma área. A violência policial, em vez de dissuadir o crime, acaba por alimentar ciclos de retaliação e desordem, minando a segurança da comunidade. O estudo revelou, no entanto, que a letalidade estava correlacionada com maiores “resultados operacionais”, como a apreensão de drogas e armas, sugerindo que a polícia pode ser incentivada a adotar táticas de confronto para gerar estatísticas de “sucesso”, mesmo que tenha como consequência uma piora do quadro de segurança pública.
A ligação entre o discurso político e a prática policial é direta. Especialistas em segurança pública afirmam que a retórica de líderes que apoiam o uso da força tem um impacto mensurável na letalidade policial. Um exemplo recente em São Paulo, Brasil, ilustra este ponto: sob um governo de “linha dura”, as mortes causadas pela polícia aumentaram 60,2% de 2023 para 2024, revertendo uma tendência de queda que tinha sido alcançada com a implementação de câmaras corporais nos uniformes dos agentes. Esta experiência prova que existem alternativas eficazes e que a aposta na letalidade é uma escolha política, não uma necessidade técnica. Uma polícia mais violenta também corrói a confiança da comunidade, um ativo essencial para a prevenção e investigação de crimes, e agrava as disparidades raciais, uma vez que a violência estatal recai desproporcionalmente sobre minorias.
O segundo pilar da agenda da extrema-direita, o armamento da população civil, também falha redondamente quando confrontado com os dados. A ideia de que um “cidadão de bem” armado dissuade o crime é um mito perigoso.
Um estudo econométrico realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública estabeleceu uma relação causal direta: a cada 1% de aumento na circulação de armas de fogo, a taxa de homicídios sobe 1,1%. Os investigadores calcularam que a política de flexibilização no Brasil impediu que o país salvasse 6.379 vidas entre 2019 e 2021. O mesmo estudo descobriu que não há qualquer evidência de que mais armas reduzam os crimes contra o património. Pior ainda, a maior disponibilidade de armas está associada a um aumento de 1,2% nos latrocínios (roubo seguido de morte), pois as armas legais acabam por alimentar o mercado ilegal, tornando os confrontos mais letais.
Nos Estados Unidos, uma reanálise das leis que facilitaram o porte de armas concluiu que, dez anos após a sua implementação, estas levaram a um aumento de 13% a 15% nos crimes violentos. A promessa de segurança revelou-se uma miragem estatística.
Além disso, a narrativa do “cidadão de bem” ignora duas realidades trágicas: a violência doméstica e o suicídio. A arma comprada para proteção contra um estranho torna-se, com frequência, o instrumento de violência dentro de casa. No Brasil, um estudo revelou que 35% das mulheres vítimas de agressão não letal por arma de fogo já tinham registado queixas anteriores de violência, na maioria dos casos contra o seu parceiro ou ex-parceiro. A presença de uma arma transforma um histórico de abuso num potencial feminicídio.
O caso da Suíça, frequentemente citado pelos defensores das armas, é um poderoso alerta. Apesar de uma forte cultura de responsabilidade, o país tem uma das mais altas taxas de suicídio por arma de fogo do mundo. Em 2022, de 220 mortes por armas de fogo, 200 foram suicídios. A disponibilidade de um método altamente letal em casa transforma uma crise impulsiva e potencialmente temporária numa fatalidade irreversível.
A proposta do Chega para armar mais e com menos restrições as forças de segurança não é uma solução inovadora para os desafios de Portugal. É a importação de um modelo político falhado, cujas consequências desastrosas estão exaustivamente documentadas em todo o mundo. A evidência empírica é esmagadora: mais armas e mais poder de fogo nas mãos da polícia e dos civis não criam sociedades mais seguras. Pelo contrário, criam sociedades mais letais, onde os conflitos escalam mais rapidamente para a morte, a violência doméstica se torna mais perigosa e o desespero individual encontra um fim mais definitivo.
O caminho para uma segurança pública robusta e duradoura não passa pela força bruta, mas pela inteligência, pela prevenção e pelo fortalecimento das instituições democráticas. Passa por políticas baseadas em dados, como as que levaram à redução da letalidade policial em São Paulo, e por um controlo rigoroso de armas, como o que foi implementado com sucesso na Austrália e na Nova Zelândia, que, após massacres, baniram armas de assalto e viram as suas taxas de violência armada diminuir drasticamente.
Portugal tem a oportunidade de aprender com os erros e acertos de outros países. Rejeitar a proposta do Chega não é apenas uma decisão sobre uma lei específica; é uma escolha sobre o tipo de sociedade que se quer construir. Uma sociedade que aposta na prevenção em vez da repressão, na coesão em vez do medo, e na evidência em vez da ideologia. A segurança dos portugueses depende de rejeitar o perigoso e falacioso paradoxo da letalidade.

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