Sobre a idolatria, o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, disse várias coisas saborosas, entre elas, esta: “O selvagem dobra-se diante ídolos de madeira e de pedra, o homem civilizado, diante de ídolos de carne e osso.”
A nossa vida intelectual, depois de quarenta e seis anos de democracia e de muitas décadas de saudável pedagogia libertadora de um António Sérgio, vive ainda no comprimento de onda da mais provinciana e infecunda idolatria, como se torna evidente com a histeria obituária que por aí se despenha, de cada vez que se assinala o passamento de um vulto de algum modo mais destacado, no nosso meio cultural. A falta de perspectiva e de aconselhável comedimento que então nos assola é simplesmente assustadora. Uma avaliação honesta, modesta, comedida, e fora das ejaculações mais intemperadas é considerada inveja, mau feitio e desmancha-prazeres. O cronista A, o romancista B, o poeta C, o filósofo D são, no mínimo, verdadeiros gigantes, só que ninguém dá por eles, nos verdadeiros areópagos. Há nesta loucura não tão mansa como isso algo de muito doentio: uma espécie de sobrecompensação para a nossa pequenez e relativa pouca relevância internacional. Debita-se para aí uma ladainha de Bandarra, com promessas férvidas de triunfos que nos compensem de infortúnios pretéritos. Escrevemos então o melhor romance dos últimos cem anos, um poema tão grande como os Lusíadas e temos, entre nós, o melhor filósofo dos últimos três séculos ou mesmo de sempre. E fazemos uma festa com grande espalhafato, que só não nos torna mais ridículos porque ninguém, lá fora, dá por isso.
Na África do Sul, na língua Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português, um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele.
Na África do Sul, na língua Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português, um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele.
O pior das idolatrias é que são um terrível entrave ao progresso do conhecimento. Este sempre se fez de um necessário acolhimento à contradição e ao encontrar sucessivo de melhores respostas para as nossas perplexidades. A admiração não faz mal, mas o embevecimento é de mau aviso. Além do mais, o idólatra tende a reduzir o diâmetro do foco da sua atenção: só vê o idolatrado e nada mais à sua volta ou para trás, numa espécie de “criacionismo” que a ciência de há muito rejeita.
Para terminar, direi que o Portugal de Bento Caraça, de Aniceto Monteiro, de Aurélio Quintanilha, de Tiago Oliveira, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Jaime Cortesão, de Raul Proença, de José Régio, de Rui Luis Gomes, de Abel Salazar, de Jorge de Sena e de tantos bons argonautas da Seara Nova não merece que lhe suceda um Portugalinho idólatra, provinciano, unânime e contente. Alguém dizia que um Professor é um cavalheiro de opinião diferente. Um verdadeiro pensador, um verdadeiro investigador, um verdadeiro artista criador é também isso mesmo: um cavalheiro de opinião diferente A idolatria não acolhe a opinião diferente e é sempre um triste sinal de atraso. Por mim, enquanto o vigor me não abandonar, terei sempre muito orgulho em pertencer à tribo dos cavalheiros de opinião diferente. Até porque, mesmo com a minha provecta idade, não quero ficar parado.
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