Nos anos que se seguiram à crise do petróleo, na década de 1970, o governo militar e a Eletronorte decidiram construir uma hidrelétrica na cidade de Presidente Figueiredo, pouco mais de 100 quilômetros rio acima.
Decomposição das árvores submersas produz impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica |
O objetivo declarado da construção da usina de Balbina era reduzir a dependência de Manaus de usinas movidas a combustíveis fósseis. A usina, porém, inundou uma área de floresta nativa equivalente a 2,4 mil quilômetros quadrados, quase duas vezes maior que a do Lago de Itaipu (maior hidrelétrica do mundo,) para produzir menos de 2% da energia produzida pela usina binacional.
Mesmo depois que a obra ficou pronta, Manaus continuou dependendo de usinas térmicas para mais da metade de sua demanda na época. Quando a cidade se conectou ao Sistema Interligado Nacional (SIN), com o linhão de Tucuruí, em 2013, Balbina não respondia por mais de 20% da eletricidade consumida na capital do Amazonas.
Contaminada pelo apodrecimento das árvores e animais mortos pelo lago, a água do Uatumã nessa área se tornou imprópria para banho e consumo humano e, assim que as comportas foram abertas, em 1989, deixou um rastro de mortes de peixes e animais rio abaixo.
Essa história é contada, entre outras fontes, no documentário "Balbina no País da Impunidade", também de 1989, e por matérias de importantes jornais estrangeiros.
Orçada oficialmente em US$ 750 milhões, Balbina levou quase nove anos para ser construída. Tida como cara e de alto custo de manutenção, recebeu críticas desde que ainda era projeto.
Para o físico e então reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, havia alternativas melhores, como a construção de térmicas abastecidas por gás natural que a Petrobras havia descoberto em Juruá, a 500 quilômetros de Manaus.
Também se falava do fato de a obra ser construída em uma região de floresta com imensa biodiversidade. Em março de 1988, cerca de seis meses após o início do alagamento dessa região da Amazônia, a repórter Marlise Simons, do The New York Times, acompanhou uma das equipes de um grupo de 250 pessoas encarregado de encontrar, capturar e soltar em áreas seguras animais ilhados.
O título apontava: "O Brasil quer hidrelétricas, mas a que custo?"
"Os animais terrestres aqui ou fugiram ou morreram", contava à jornalista o zoólogo Bento Melo, enquanto seguiam pelo rio em expedição. "Estamos buscando animais de árvores, como primatas, preguiças, felinos e tamanduás."
Sem o mesmo tipo de socorro, bichos menores como lagartos, escorpiões e aranhas se defendiam como podiam - ficavam amontoados na copa das árvores, o que resultava em imagens insólitas de folhagens tomadas por essas espécies.
Animais que nadam bem foram deixados sozinhos. O alagamento resultou na criação de mais de 3,5 mil ilhas no lago, algumas pequenas, outras com alguns quilômetros quadrados. "Ninguém tem a mínima ideia de quantos bichos há nesta área, nem a quantidade de vida que ela pode sustentar", dizia Melo.
Ao menos duas aldeias indígenas existentes na região do lago — como a dos Waimiri-Atroari — foram transferidas e, com a morte dos peixes, após o início da operação, muitos moradores da região ficaram sem ter o que comer e beber.
Os efeitos ambientais são sentidos até hoje. A decomposição das árvores submersas geram dióxido de carbono na superfície e, no fundo do lago, metano, com impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica, segundo cálculos do ecólogo Alexandre Kemenes, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Preso ao fundo pela pressão, o gás é liberado na passagem da água pelas turbinas da usina e contribui para a morte de peixes do fundo do rio, como os bagres. Com isso, de acordo com Kemenes, Balbina emite dez vezes mais gases do efeito estufa que uma usina termelétrica a carvão com a mesma potência — há outros estudos que apontam um número menor, mas todos trazem evidências de que a hidrelétrica emite mais gases de efeito estufa que uma termelétrica com potencial equivalente.
Por tudo isso, e pela baixa capacidade de geração em relação ao tamanho do lago, recentemente a usina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas como Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ.
Passados 30 anos, a água do Uatumã ainda não voltou a ser potável e peixes de algumas espécies, antes comuns, são hoje relativamente raros.
"Quando as águas baixaram, o cheiro de peixe morto era insuportável. Tudo aqui em volta, no mato, onde a água chegou, cheirava muito mal", lembra o ribeirinho Antônio Martins Queirós, de 65 anos.
A situação, hoje, é outra e o que era degradação, nos últimos anos, vem se transformando em oportunidade para quem vive em uma área rica em belezas naturais.
Três décadas depois do desastre ambiental, o ecoturismo encontra espaço no rio Uatumã, com a criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável, controle do acesso de barcos-hotéis vindos de fora e participação da população local na atividade turística.
Aos poucos, o turismo vai substituindo como fonte de renda a pesca, a caça e outras formas de extrativismo nocivas ao meio ambiente.
Sentado sobre uma pilha de tijolos, descalço, de bermuda e camisa pólo, o ribeirinho Antônio Queirós discorre sobre seus planos. Até 2018, vivia da agricultura de subsistência e da venda de melancias que plantava no entorno da casa onde mora.
A picada de uma surucucu (a segunda), no entanto, o levou a repensar o futuro.
Animado pelos resultados de outros ribeirinhos, decidiu usar suas economias para construir uma pousada e se somou ao grupo que vem investindo no ecoturismo.
Já são dez as pousadas em funcionamento na região, e outras cinco devem entrar em operação até 2020. Até cinco anos atrás, eram apenas duas pousadas. "É minha aposentadoria. Já não tenho disposição para a agricultura", diz Queirós.
O bom momento atual é reflexo de ações de preservação ambiental na região.
Em 2004, depois de um período de forte degradação do rio, iniciado com a abertura das comportas de Balbina, o governo do Estado do Amazonas transformou uma área quase duas vezes maior que o município de São Paulo, no entorno do rio, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã (RDS Uatumã).
A unidade de preservação ambiental foi o ponto de partida de um plano estratégico de desenvolvimento sustentável para a região, que prevê, entre outras coisas, a exploração do ecoturismo, do turismo de base comunitária e da pesca esportiva como alternativas de renda para as populações ribeirinhas.
Primeiro, veio a proibição à exploração de pousadas na região por quem não fosse morador — havia duas, hoje fechadas. Depois, o ordenamento para a construção de pousadas pelos ribeirinhos.
Mais recentemente, houve a restrição a barcos-hotéis, vindos de Manaus, que até 2016 podiam circular em qualquer um dos três pólos da reserva.
As embarcações costumavam trazer dezenas de pessoas e deixavam para trás apenas lixo, contam os ribeirinhos.
Desde então, porém, a circulação ficou restrita a um dos pólos, o menor, onde não há pousadas. "Assim, os barcos deixaram de concorrer com as comunidades locais", afirma Cristiano Gonçalves, gerente da unidade de preservação.
Mesmo depois que a obra ficou pronta, Manaus continuou dependendo de usinas térmicas para mais da metade de sua demanda na época. Quando a cidade se conectou ao Sistema Interligado Nacional (SIN), com o linhão de Tucuruí, em 2013, Balbina não respondia por mais de 20% da eletricidade consumida na capital do Amazonas.
Contaminada pelo apodrecimento das árvores e animais mortos pelo lago, a água do Uatumã nessa área se tornou imprópria para banho e consumo humano e, assim que as comportas foram abertas, em 1989, deixou um rastro de mortes de peixes e animais rio abaixo.
Essa história é contada, entre outras fontes, no documentário "Balbina no País da Impunidade", também de 1989, e por matérias de importantes jornais estrangeiros.
Orçada oficialmente em US$ 750 milhões, Balbina levou quase nove anos para ser construída. Tida como cara e de alto custo de manutenção, recebeu críticas desde que ainda era projeto.
Para o físico e então reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, havia alternativas melhores, como a construção de térmicas abastecidas por gás natural que a Petrobras havia descoberto em Juruá, a 500 quilômetros de Manaus.
Também se falava do fato de a obra ser construída em uma região de floresta com imensa biodiversidade. Em março de 1988, cerca de seis meses após o início do alagamento dessa região da Amazônia, a repórter Marlise Simons, do The New York Times, acompanhou uma das equipes de um grupo de 250 pessoas encarregado de encontrar, capturar e soltar em áreas seguras animais ilhados.
O título apontava: "O Brasil quer hidrelétricas, mas a que custo?"
"Os animais terrestres aqui ou fugiram ou morreram", contava à jornalista o zoólogo Bento Melo, enquanto seguiam pelo rio em expedição. "Estamos buscando animais de árvores, como primatas, preguiças, felinos e tamanduás."
Usina de Balbina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas |
Animais que nadam bem foram deixados sozinhos. O alagamento resultou na criação de mais de 3,5 mil ilhas no lago, algumas pequenas, outras com alguns quilômetros quadrados. "Ninguém tem a mínima ideia de quantos bichos há nesta área, nem a quantidade de vida que ela pode sustentar", dizia Melo.
Ao menos duas aldeias indígenas existentes na região do lago — como a dos Waimiri-Atroari — foram transferidas e, com a morte dos peixes, após o início da operação, muitos moradores da região ficaram sem ter o que comer e beber.
Os efeitos ambientais são sentidos até hoje. A decomposição das árvores submersas geram dióxido de carbono na superfície e, no fundo do lago, metano, com impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica, segundo cálculos do ecólogo Alexandre Kemenes, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Preso ao fundo pela pressão, o gás é liberado na passagem da água pelas turbinas da usina e contribui para a morte de peixes do fundo do rio, como os bagres. Com isso, de acordo com Kemenes, Balbina emite dez vezes mais gases do efeito estufa que uma usina termelétrica a carvão com a mesma potência — há outros estudos que apontam um número menor, mas todos trazem evidências de que a hidrelétrica emite mais gases de efeito estufa que uma termelétrica com potencial equivalente.
Por tudo isso, e pela baixa capacidade de geração em relação ao tamanho do lago, recentemente a usina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas como Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ.
Passados 30 anos, a água do Uatumã ainda não voltou a ser potável e peixes de algumas espécies, antes comuns, são hoje relativamente raros.
"Quando as águas baixaram, o cheiro de peixe morto era insuportável. Tudo aqui em volta, no mato, onde a água chegou, cheirava muito mal", lembra o ribeirinho Antônio Martins Queirós, de 65 anos.
A situação, hoje, é outra e o que era degradação, nos últimos anos, vem se transformando em oportunidade para quem vive em uma área rica em belezas naturais.
Três décadas depois do desastre ambiental, o ecoturismo encontra espaço no rio Uatumã, com a criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável, controle do acesso de barcos-hotéis vindos de fora e participação da população local na atividade turística.
Aos poucos, o turismo vai substituindo como fonte de renda a pesca, a caça e outras formas de extrativismo nocivas ao meio ambiente.
Sentado sobre uma pilha de tijolos, descalço, de bermuda e camisa pólo, o ribeirinho Antônio Queirós discorre sobre seus planos. Até 2018, vivia da agricultura de subsistência e da venda de melancias que plantava no entorno da casa onde mora.
A picada de uma surucucu (a segunda), no entanto, o levou a repensar o futuro.
Animado pelos resultados de outros ribeirinhos, decidiu usar suas economias para construir uma pousada e se somou ao grupo que vem investindo no ecoturismo.
Já são dez as pousadas em funcionamento na região, e outras cinco devem entrar em operação até 2020. Até cinco anos atrás, eram apenas duas pousadas. "É minha aposentadoria. Já não tenho disposição para a agricultura", diz Queirós.
O bom momento atual é reflexo de ações de preservação ambiental na região.
Em 2004, depois de um período de forte degradação do rio, iniciado com a abertura das comportas de Balbina, o governo do Estado do Amazonas transformou uma área quase duas vezes maior que o município de São Paulo, no entorno do rio, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã (RDS Uatumã).
A unidade de preservação ambiental foi o ponto de partida de um plano estratégico de desenvolvimento sustentável para a região, que prevê, entre outras coisas, a exploração do ecoturismo, do turismo de base comunitária e da pesca esportiva como alternativas de renda para as populações ribeirinhas.
Primeiro, veio a proibição à exploração de pousadas na região por quem não fosse morador — havia duas, hoje fechadas. Depois, o ordenamento para a construção de pousadas pelos ribeirinhos.
Mais recentemente, houve a restrição a barcos-hotéis, vindos de Manaus, que até 2016 podiam circular em qualquer um dos três pólos da reserva.
As embarcações costumavam trazer dezenas de pessoas e deixavam para trás apenas lixo, contam os ribeirinhos.
Desde então, porém, a circulação ficou restrita a um dos pólos, o menor, onde não há pousadas. "Assim, os barcos deixaram de concorrer com as comunidades locais", afirma Cristiano Gonçalves, gerente da unidade de preservação.
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