Na semana em que o filho Zero Três contaminou a atmosfera com a ideia tóxica de um "novo AI-5", Bolsonaro editou o primeiro ato institucional da nova era. Ordenou a todas as repartições públicas federais que cancelem assinaturas do jornal Folha de S.Paulo. Fez isso macaqueando seu amado Donald Trump, que anunciara dias antes o corte das subscrições do New York Times e do Washington Post. O mito tropical esboçou o seu AI-2. Ameaçou cassar a concessão que mantém no ar a TV Globo.
Ironicamente, Folha e Grupo Globo sustentam em suas linhas editorias ideias congruentes com as que o ministro Paulo Guedes (Economia) tenta colocar em prática. Coisas como responsabilidade fiscal, privatizações, eliminação de privilégios, enxugamento da estrutura do Estado, desburocratização, integração do Brasil à economia mundial ... Mas o que preocupa Bolsonaro é a sua agenda paralela: controlar a caixa registradora do PSL, blindar o Zero Um, sedar o faz-tudo Fabrício Queiroz e seus vínculos milicianos, virar do avesso o depoimento do porteiro, livrar o Zero Dois na CPI das Fake News, servir filé mignon para o Zero Três...
A despeito da energia que desperdiça fabricando as crises internas que prejudicam o seu próprio governo, Bolsonaro ainda encontra tempo para desmantelar o aparato ambiental, caluniar ONGs, desmoralizar cientistas, fustigar instituições com a fábula do leão e das hienas, criticar artistas, sufocar organizações culturais e intimidar a imprensa —sobretudo o pedaço da imprensa que veicula em voz alta, com franqueza e lealdade à opinião pública, as coisas que os próprios ministros e aliados de Bolsonaro comentam às suas costas.
Para o capitão, a Folha desceu "às profundezas do esgoto" e a Rede Globo dedica-se à patifaria. O penúltimo presidente que expressou sentimentos semelhantes foi Lula. Tachava a Folha de "preconceituosa". Em 2010, retirou-se bruscamente de uma mesa de almoço no jornal. Alegou estar ofendido com um par de perguntas do então diretor de redação Otavio Frias Filho sobre sua política fisiológica de alianças e sobre o fato de ostentar desprezo pelo estudo mesmo depois de se tornar um líder nacional.
Quanto à emissora, Lula disse há nove dias, numa das inúmeras entrevistas que concedeu na cadeia: "Um dos desejos que eu tenho é fazer um ato público na frente da TV Globo. Passar um dia inteiro falando e mostrando as mentiras contadas a meu respeito".
Bolsonaro e Lula sustentam que a imprensa está desmoralizada e perde relevância. O morubixaba do PT diz isso desde a cadeia. Corrupto de terceira instância, aguarda por uma manobra do Supremo que anule suas sentenças. O capitão já foi informado por pesquisas de diferentes institutos de que não é incondicional nem inesgotável a boa vontade da plateia. Às voltas com uma popularidade declinante, o inquilino do Planalto torce para que o Supremo não desative os escudos que inibem investigações sobre os subterrâneos da família.
A imprensa tem muitos defeitos. Mas arrosta a antipatia de gente como Bolsonaro e Lula por conta de uma virtude: cumpre a missão jornalística de adequar as aparências à realidade e não adaptar a realidade às aparências, como prefeririam os imperadores da política. O papel da imprensa não é o de apoiar ou de se opor a governos. Sua tarefa é a de levar à plateia tudo o que tenha interesse público. Só não entende isso quem não dispõe de discernimento intelectual para conviver com o livre curso de informações e ideias.
Jair Bolsonaro, por exemplo, não aceita senão o apoio irrestrito e a capitulação. Por isso sonha com uma democracia de fachada, sem imprensa independente. Há pessoas cuja obra só será devidamente entendida daqui a um século. Bolsonaro só poderia ser perfeitamente entendido no século passado.
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