terça-feira, 20 de agosto de 2019

Minha presada Leilane Neubarth

Querida Leilane Neubarth, eu estava de olho na Globonews quando você se pôs a chorar ao vivo depois de apresentar a notícia sobre as balas perdidas que deixaram seis jovens mortos. Milhares de pessoas choraram junto. Foi o momento jornalístico mais revelador, na semana passada, de como vai o país. Esta carta que agora de público envio é de aplauso e solidariedade à sua sensibilidade.

Você deve ter ouvido na faculdade, e também nesses muitos anos de redação, que jornalistas se movem pela bússola da objetividade. Eles não deixam a gaveta do peito aberta para que os outros percebam ter se manifestado pelo gosto de suas personalidades.

Jornalistas não piscam seus afetos. Seriam de um modo geral pessoas duras, assemelhados cinicamente ao personagem do "Nervos de aço" do Lupicínio, aquele "sem sangue nas veias e sem coração". Os manuais de redação pedem zero de sentimentalismo. Recomendam que os jornalistas ouçam as fontes e, pelo amor a Herbert Moses, usem ao dar a noticia o verbo curto e grosso da impessoalidade.

O sonho de um editor seria uma equipe só de repórteres como o Clark Kent ou abnegados robôs, a versão atualizada do Super-Homem. Ainda bem, Leilane, que você foi na contramão desses paradigmas clássicos e, vítima também desse impressionante acúmulo de notícias ruins que chicoteia o Brasil, refletiu com seu choro o momento de fragilidade geral.


"Ao ver tantas vidas perdidas a gente se pergunta" - você disse na apresentação da notícia dos jovens mortos pela PM, sem pudor de apagar com a mão as lágrimas que escorriam - "onde foi que a sociedade errou e o que pode ser feito?"

Eu sei que você gosta de música, Leilane. Por uma ironia do destino - clichê que, tenho certeza, uma boa jornalista como você jamais escreveria - o seu choro triste aconteceu às vésperas deste 18 de agosto, quando se comemoram os 80 anos da primeira gravação de "Aquarela do Brasil". É o segundo hino nacional, uma ode à harmonia racial e à felicidade de ter nascido aqui.

O orgulho de Ari Barroso delira numa letra de exaltação das fontes murmurantes, da Sá Dona arrastando o vestido rendado, tudo sob a merencória luz da lua e aos pés do coqueiro que dá coco. O Brasil era o paraíso na Terra - e eu só estou falando de música numa hora dessas para complementar a sua pergunta, Leilane.

O que pode ser feito para abrir a cortina do passado e deixar cantar de novo o trovador com boas notícias sobre o país? Onde foi que a sociedade errou e o Brasil deixou de ser lindo e trigueiro?

Tenho a impressão, Leilane, que foi aí, na percepção de tantas perguntas se acumulando, da ineficiência das respostas apresentadas até agora, que a sua sensibilidade de brasileira falou mais alto e, sem querer afrontar o ombudsman, mandou às favas os rigores do manual interno. A escalada do horror não cabe mais no lead tradicional do jornalismo. Tiraram o Rei Congo do congado. Na "Aquarela 2019", PMs espalham o medo com caveira nos uniformes. Como descrever tamanha barbárie?

Foi aí, prezada Leilane Neubarth, na observação fina de que as palavras já não são suficientes, que você mandou muito bem. Deixou de lado a velha objetividade jornalística e sublinhou a notícia desse tempo lamentável com o espanto cívico de suas lágrimas. Parabéns.

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