Brasília não foi feita para grandes manifestações. Os gritos se perdem na solidão do Planalto, ninguém abre as janelas para jogar papel picado, água ou mesmo máquina de escrever, como no Rio dos anos 1960. Mas o clima aqui mudou. A concentração diante do Q.G. do Exército ainda tem gente, embora não tanto quanto no princípio. Amiga que passa por lá diz que, de vez em quando, rezam ou cantam o Hino Nacional. Os vendedores ambulantes foram retirados, e o clima de feira livre se dissipou.
O cheiro de queimado ainda está no ar porque ninguém foi punido, até agora. Ninguém foi preso no dia do fogaréu. Tudo se passa como se Brasília fosse invadida por extraterrestres que voltaram ao espaço sideral: não há mais como alcançá-los. Apesar de tantos vídeos e rastros deixados no caminho.
Atos violentos costumam marcar o fim de movimentos de massa. São uma espécie de ruidosa extrema-unção. Mas, apesar disso, é preciso reconhecer que nunca se protestou tanto contra um resultado eleitoral. No passado, os perdedores tendiam à resignação ou mesmo à indiferença. Desta vez, houve um movimento intenso e capilarizado.
A cada dia, surgia uma esperança: o relatório das Forças Armadas, o Tribunal Internacional. Houve quem acreditasse que o vencedor tinha morrido, e um clone ocupara o seu lugar. Há uma psicologia de seita religiosa que, certamente, o curso dos meses atenuará. No entanto é preciso prudência.
O que acentua o cheiro de queimado no ar é a festa de uma eleição vitoriosa sem levar muito em conta esse clima. Estamos no momento da lua de mel, em que os vencedores se sentem à vontade. Uma lua de mel diferente. E parece que essa singularidade escapa às cabeças dominantes. A luta pelos ministérios deixa muita gente preocupada com cargos e honrarias, no momento em que é preciso desenhar um esquema de governo eficiente para realizar sua tarefa histórica.
A Lei da Estatais foi para o espaço. Num só dia, aumentou-se a cota de publicidade que as empresas podem usar, e retiraram-se os obstáculos para que políticos voltassem a ocupar os cargos diretivos. Observadores políticos reclamam que os erros do passado não foram entendidos. Mas os erros do passado foram esquecidos pela sociedade, que elegeu de novo os mesmos atores.
A verdadeira lição que o pragmatismo político ensina é esta: é possível cometer grandes erros históricos porque o preço é a vitória de uma extrema direita tosca e alucinada, que dura pouco no poder. Em menos de quatro anos, a maioria estará de novo sonhando com a volta do antigo esquema. Esse parece ser o círculo de ferro em que a História moderna do Brasil se encerrou. Não se pode perder nunca a esperança de quebrá-lo.
Ainda é tempo de evitar os mesmos erros e suprimir a extrema direita dessa alternância no poder. Um dos caminhos é compreender um governo de frente não como um ajuntamento, mas como resultado de uma escolha dos mais representativos e capazes. É desenhar o organograma não como um espaço elástico para acomodar todas as ambições, mas como um desenho inteligente para realizar a tarefa histórica.
Afinal, é pedir muito querer uma tentativa real de sair disso que o querido Cazuza chamava de “museu de grandes novidades”? Brasília ferve no calor dos incêndios extremistas, na temperatura da surda luta pelo poder, na força regressiva das velhas tendências fisiológicas do Centrão.
Enfim, apesar das chuvas, ainda não consigo afastar das narinas esse desconfortável cheiro de queimado.
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