segunda-feira, 2 de julho de 2018

Responsabilidade invertida

O Brasil vive um momento particularmente instrutivo. Sem rodeios ou meias palavras, parece ter chegado o tempo de se pôr as cartas na mesa: a fatura da inconsequência das elites políticas e econômicas será, uma vez mais, quitada pelo povo. A inversão do ônus da responsabilidade de ações que resultaram na degradação das instituições no país está em curso.


Impulsionada por essa tendência, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PL 580/2015, que altera a lei de execução penal para que os/as encarcerados/as passem a ressarcir o Estado pela sua manutenção no sistema prisional. Na justificativa da proposta, sinaliza-se que a transferência dos custos do cárcere para os/as presos/as abre espaço para o investimento em outras áreas estratégicas. Nas declarações de muitos senadores/as, está a preocupação de se evitar que o erário seja onerado com a manutenção das “mordomias” patentes nos presídios brasileiros.

Essa pauta está alinhada à uma agenda governamental que trabalha por meio de ações truculentas. Não nos deixa mentir a intervenção militar deflagrada no Rio de Janeiro em fevereiro desse ano. O desfile de tanques de guerra; a humilhação das revistas e o toque de recolher impostos às periferias negras da cidade foram as cenas televisionadas para se sinalizar a firmeza do golpe. Os resultados mais palpáveis desse espetáculo bélico são as pilhas de corpos desumanamente descartados, como no caso que deixou a Maré de luto pelo assassinato de Marcus Vinicius da Silva no último dia 20. Com o slogan do controle e do extermínio, cobra-se o pedágio de quem mais sofreu com as artilharias pesadas da alardeada corrupção.

Com uma previsão de cortes orçamentários e a roleta das urnas se aproximando, o discurso sustentado pela cultura punitiva ganha fôlego renovado. Nessa manobra, a pintura da prisão em cores dóceis é a faceta mais aviltante dessa retórica de perversidades.

O contra-discurso necessário a esse contexto deve ser pautado a partir das vozes que são sistematicamente abafadas, humilhadas, esquecidas. Numa dessas raras oportunidades temos acesso a essas narrativas, visibilizadas no âmbito do projeto Cartas do Cárcere, promovido pela parceria entre PNUD e a PUC-Rio. A análise de mais de 8.000 cartas encaminhadas pelos/as encarcerados/as à Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais em 2016, nos permitem visualizar as entranhas do sistema a partir de testemunhos reais e dolorosos.

São cartas que falam de escolhas marcadas pelas armadilhas da exclusão social, da falsidade de acusações, das ameaças que tem a morte como desfecho provável. Relatos que denunciam a superlotação, pleiteiam o acesso à saúde, rogam pelo fim das torturas. Rabiscos desesperados que, na contramão do que se declara na propaganda conservadora, tem o acesso à justiça e não o reclame por frivolidades, como seu principal mote. No espaço em que sobram as iniquidades das violações, da insalubridade e do abandono, se amontam demandas pelas garantias básicas da legislação: a progressão de pena, a assistência judiciária, o proferimento da sentença definitiva.

É na escuta dessas vozes ignoradas e não nos autofalantes de carrascos engravatados que podemos encontrar saídas fora do cinismo político.

Pautado em perspectivas reacionárias, o aludido projeto determina que os/as encarcerados/as que não puderem indenizar o Estado com seu patrimônio, o façam com o suor de sua lida. Trata-se do ciclo insidioso que vulnerabiliza os indivíduos, os encarcera, para depois expropriar sua força de trabalho. O espelho com as marcas históricas da escravidão não é mera coincidência.

Afinal, só um país que renova e aprofunda os sentidos do racismo pode acolher esse tipo de proposta. Há que se lembrar que nosso sistema prisional é o resultado mais bem-acabado dos desmandos institucionais que degradaram as estruturas básicas da saúde e da educação. Nele desembocam os/as representantes da massa negra empobrecida e historicamente perseguida pelo Estado. Agora, é no boleto do cárcere que se quer creditar a sustentação das plataformas sociais que nunca estiveram à serviço desses indivíduos.

Por óbvio, é na conta dos privilégios, e não na exploração das algemas, que os recursos para a compensação do orçamento devem ser procurados. A grande dívida acumulada no país é com as pessoas socialmente marginalizadas, seletivamente encarceradas, gratuitamente exterminadas para que se forjem falsas sensações de segurança. É esse, em verdade, o grande rombo no orçamento no Brasil: o de caráter ético que tem de achar os caminhos de uma revisão política efetiva e não o aprofundamento de nossas tragédias seculares, para que possa ser finalmente liquidado.

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