terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Em nome da lei

Quando o presidente Donald Trump declarou ser o principal responsável pelo cumprimento da lei no seu país, ele não estava rompendo formalmente nenhum preceito legal. Mas, quebrou uma regra de ouro do presidencialismo democrático, que demanda de presidentes a neutralidade nos processos judiciais. O procurador-geral é nomeado pelo presidente e tem, em princípio, o comando sobre os inquéritos. Trump politizou o cargo, como tem feito com vários outros com poder regulatório.

Desta forma, esvazia instituições de seu papel de freios e contrapesos no processo judicial, na proteção ambiental e na regulação do mercado.

No caso da Justiça, o presidente pressionou o procurador-geral, buscando interferir no sentenciamento de um amigo, Roger Stone, comprovadamente envolvido em obstrução de justiça e manipulação de testemunhas, no caso da interferência da Rússia nas eleições. A pressão de Trump não conseguiu absolver o companheiro, mas logrou reduzir sua sentença.

A invasão do espaço judicial pelo presidente, com objetivos pessoais e políticos, ocorreu logo depois que ele foi absolvido pelo Senado no processo de impeachment, por obstrução das investigações da Câmara.

Este é apenas um dos perigos envolvidos nos processos de impeachment em ambientes altamente polarizados. A absolvição pode ser interpretada como uma delegação de poderes ainda mais amplos. Trump recebeu a impunidade, ou imunidade, como uma delegação de superpoderes e os está usando para bombardear o sistema de freios e contrapesos, que impõe limites à ação presidencial.

Um dos procuradores da Justiça envolvidos no processo de Stone pediu demissão e disse que Trump agia como um governante em um regime autoritário. Não estava exagerando.

Analistas respeitáveis, como Yascha Mounk da Universidade Johns Hopkins, têm alertado que há riscos concretos e presentes ao sistema democrático nos Estados Unidos derivados do comportamento autocrático de Trump e de seus ataques às instituições que garantem seu equilíbrio e estabilidade.


Avisa, ainda, que o padrão é que os governantes com inclinações autoritárias escalem seus ataques à democracia no segundo mandato. Portanto, os descaminhos da oposição Democrata e a polarização extremada, que imuniza Trump contra críticas pelo lado Republicano, aumentam o risco de danos à democracia em paralelo ao crescimento das chances de reeleição.

Não é um caso idiossincrático, que não encontra paralelos em outros países. Ao contrário, é parte de um padrão que se espalha no estágio da transição global que vivemos. Aconteceu na Polônia, apesar dos alertas prévios de que o sistema constitucional estava sendo desmontado pela ultradireita no poder.

A Polônia esteve na liderança do movimento contra a dominação soviética autoritária, que redundou na dissolução do sistema e no restabelecimento da democracia nos países centro-europeus. Aconteceu na Hungria, com Viktor Órban. Aconteceu na Turquia, com Recep Tayyip Erdogan. Está acontecendo no Brasil, com Bolsonaro.

Os novos autoritários trabalham por dentro das democracias. Sua porta de entrada são eleições atípicas. Chegam como governantes incidentais, que jamais teriam sido eleitos, não fossem as condições especiais das eleições que disputaram.

Em geral, o voto ocorreu em ambientes marcados por crises graves e profundas, ou por uma polarização extremada e emocionalizada, ou pela soma das duas. Uma vez instalados no poder, eles começam a ocupar os postos com capacidade de neutralizar instituições, como o Departamento de Justiça, nos Estados Unidos, o ministério da Justiça, a Comissão de Ética da Pública, a Procuradoria Geral da República, no Brasil.

Também procuram interferir nos instrumentos de influência sobre o sistema educacional e a produção cultural, além de usarem as redes digitais para disseminar ideias falsas ou truncadas. Fazem tudo alegando não estarem a descumprir a lei, ao contrário, afirmam estar implementando a lei da forma adequada pela primeira vez.

Os novos autoritários vão, desta forma, minando as instituições democráticas. Matam a democracia, em nome da lei.

Visam, principalmente, de início, as regras de convivência e procedimento que exigem dos governantes comportamento respeitoso e decoro institucional. É fácil ver que nenhum desses governantes de mentalidade autocrática e egocêntrica têm respeito e decoro no trato com as instituições e com as pessoas. Ofendem, distratam e vilipendiam nos seus tuítes e declarações. Fazem ameaças veladas ou abertas. Os alvos principais dos novos mandões são a imprensa e os jornalistas independentes.

A imprensa livre é uma das instituições fundamentais de freio aos avanços antidemocráticos de presidentes de mentalidade autoritária. Daí ser atacada, frequentemente com vileza, por presidentes como Trump e Bolsonaro. Tendem a eleger alguns veículos mais oportunistas e pouco competitivos, ávidos por ganhar espaço, e outros mais frágeis, que trocam os princípios pela sobrevivência.

A pressão sobre o Judiciário e o controle do Legislativo por meio da polarização e do pragmatismo daqueles que se propõem a viabilizar os governos, como meio de alavancar suas próprias carreiras políticas, são instrumentos importantes de combate aos anticorpos da democracia contra as infecções autoritárias. A censura e a doutrinação, a mentira e as fake news, a desqualificação e difamação dos adversários interditam o debate democrático e intoxicam a conversação pública.

A democracia não pode usar as mesmas armas. Seria como converter-se ao mal. Render-se ao autoritarismo. Só lhe resta alertar, resistir e trabalhar operosamente pela união dos democratas e pela resiliência das instituições que ainda não foram infiltradas.

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