Em tese, ler, estudar, pesquisar, escrever ficaram mais fácil: basta um clique. Porém, este clique pode sufocar as pessoas com informações e besteirol que fundem a cabeça e, no limite, adoecem.
Com efeito, os desatinos do vício tecnológico criaram dois tipos de ignorantes: o generalista e o especialista.
O ignorante generalista dá impressão de que sabe muito de muita coisa. Atende, com prazer, quem está a fim de escutar lições sem a profundidade de uma polegada. A preferência é a autoajuda, ensinar como ser feliz e bem-sucedido. Eles articulam banalidades solenemente. Têm opinião sobre tudo. O pior, opinam. Nos últimos dias, deitaram e rolaram sobre política externa.
O ignorante especialista, em tempos analógicos, lia a orelha do livro e arrotava saber e erudição. Mas façamos justiça: é o cara que sabe cada vez mais de cada vez menos. Não por modéstia, mas para figurar em debates para vencer e ter razão, sem compromisso com o esforço de iluminar novas ideias.
Por vários motivos, Umberto Ecco jamais será esquecido. Lúcido e mordaz, detonou a internet: “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar do que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”.
Em tempo de eleição, o tema invadido é a política, assunto complexo, agravado pelo vigor editorial sobre a “crise da democracia”. Em se tratando da eleição americana, vieram à tona “especialistas” nos mecanismos da democracia representativa estadunidense, construção secular robusta e que, por isso, supera ameaças, inclusive, dos que chegaram ao poder pelos seus caminhos.
A histórica eleição americana vai na contramão da atual regressão democrática, representada por autocratas que seriam reforçados com a reeleição de Trump. Ainda assim, perduram, mundo afora, ameaças ao regime democrático.
Sem cair na tentação de ignorante especialista (até porque compartilho com Karnal: “A ignorância é uma benção”), muito me agrada a definição minimalista de democracia de Adam Przeworski, inspirado em Schumpeter, Popper e Bobbio: “Democracia é simplesmente um sistema no qual os ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem”.
Aí está a essencialidade do regime democrático que é a possibilidade de alternância pacífica do poder. E a capacidade de resistir aos ímpetos da tentação totalitária.
O espetáculo da eleição americana tem um ator/espectador que não apenas ignora a simplicidade do que os eleitores disseram: “Vá pra casa Trump". E não é a Casa Branca. A "soberância", mistura de soberba com ignorância (seletiva, especializada), expõe mais do que a legítima dor de uma derrota eleitoral: evidencia uma personalidade doente com graves traços de desequilíbrio mental.
Começa por um autoritarismo devidamente identificado; vai se ampliando na medida em que sofre o ataque do voluntarismo infrene e infantilizado (quero tudo agora e sempre, esperneia, grita, berra, mas não vai conseguir); atinge o clímax, quando a ferida narcísica passa a ditar comportamentos patológicos.
A origem? O mito de Narciso. Ele cultuava uma beleza que julgava possuir e, ao se ver refletido no espelho d’água, apaixonou-se pela própria imagem, em tamanha autoadmiração que ali morreu sufocado pela própria libido.
O transtorno mental segue presente: a realidade é inaceitável, daí a negação de evidências o que revela a dissonância cognitiva a agravar a perturbação psíquica.
O remédio para um cara que se constituiu, enganando, iludindo, não seria de bom tamanho chegar como um aventureiro ao poder da maior potência mundial? Será que a leitura das eleições que revela um equilíbrio de forças, ainda que polarizada, não o satisfaz? Nada satisfaz ao Ego desse senhor. Se fosse presidente de uma república menos sólida, daria sem pestanejar um golpe de estado. Um homem sem qualidades para liderar os Estados Unidos, colocando em risco a paz mundial.
Não me venham com argumentos falaciosos sobre o sistema eleitoral americano. Tem duzentos anos de funcionamento sem interrupções. Os americanos discutirão, democraticamente, uma agenda de aperfeiçoamentos.
Ao fim e ao cabo, a democracia cumpriu seu papel primordial e simples. Segue globalmente ameaçada, mas tem anticorpos, vacina suficiente para prevenir e curar o pesadelo de uma pandemia autoritária.
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