Eu nunca havia ouvido falar do autor. Julguei se tratar de uma obra de estreia, mas, na orelha do livro, a revelação: Edson Lopes Cardoso já conta com 73 anos, e aquele era só mais um, dos vários livros escritos ao longo de sua vida.
“Nada os trará de volta” é uma compilação de textos publicados por Cardoso nas últimas quatro décadas, ao longo das quais analisa os principais acontecimentos políticos e sociais brasileiros.
À medida em que folheava o livro, um sentimento de completa alienação tomou conta de mim. Como nunca havia ouvido falar de um intelectual com uma obra tão vasta, que se formou em algumas das principais instituições do país (UFBA, UnB e USP) e se valia de tantas referências históricas e culturais num diálogo com os principais intérpretes de nossa sociedade?
“Diálogo”, porém, é apenas uma força de expressão. Uma pesquisa nos acervos dos principais jornais me indicou que há raríssimas aparições de Edson Lopes Cardoso na grande imprensa brasileira. Aos poucos, fui percebendo que talvez eu não fosse o único alienado a nunca ter travado conhecimento de sua obra.
Sim, Edson Lopes Cardoso é negro - e uma das vozes mais lúcidas no movimento negro brasileiro. Militante, foi um dos organizadores da histórica Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, que reuniu mais de 30 mil pessoas em Brasília em 1995 e teve reedições nos anos seguintes. Foi chefe de gabinete do sociólogo Florestan Fernandes, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), durante seu segundo mandato como deputado federal de 1991 a 1994. E é coordenador do Ìrohìn - Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-Brasileira.
A obra de Cardoso é um passeio pelos principais acontecimentos brasileiros e mundiais das últimas décadas, analisados à luz dos seus impactos sobre a vida da população negra. A profundidade e a sofisticação do seu pensamento não ficam atrás de nenhum dos cultuados nomes da intelectualidade branca brasileira.
O fato de um pensador desse porte ser pouquíssimo conhecido e não encontrar espaço na grande mídia diz muito sobre o nosso racismo estrutural - e do quanto precisamos avançar para a ampliação da presença dos negros em nossa sociedade, inclusive na política.
Num de seus textos, Cardoso resgata a figura de Manoel da Motta Monteiro Lopes, primeiro deputado federal negro de nossa história, jurista pernambucano eleito em 1909, após ter tido diploma negado pela classe política em 1905. De lá pra cá, outros negros conseguiram chegar ao Congresso e também a prefeituras e governos estaduais, mas de forma desproporcional ao tamanho da população negra.
Cardoso reconhece o papel do movimento negro ao denunciar o racismo, ampliando a conscientização dos cidadãos, e reivindicar direitos de pretos e pardos, mas demonstra que as principais conquistas obtidas nas últimas décadas se deram sob a tutela de políticos brancos, no âmbito dos partidos e dos governos.
O Brasil somente será um país verdadeiramente democrático, segundo Edson Cardoso, caso haja representação de peso para a população pobre e preta. “Queremos opinar e sugerir, dirigir, decidir, queremos comando, queremos monitorar e implementar, queremos a gerência de recursos públicos, queremos o controle das riquezas que ajudamos a construir”, escreveu em julho de 2005.
Junto com o livro, veio o convite para o seu lançamento em São Paulo, que ocorreu na quinta-feira passada (9/06). Por coincidência, eu estava na capital paulista e decidi comparecer, a fim de conhecer ao vivo o pensador que acabara de abrir meus olhos para tantas questões.
O evento era um debate com lideranças da Coalizão Negra por Direitos, ativistas que lançaram recentemente mais de cem pré-candidaturas de pretas e pretos aos cargos de deputado estadual e federal, em praticamente todos os Estados do país. Aglutinados no movimento “Quilombo nos Parlamentos”, essas lideranças de dezenas de movimentos sociais pretendem colocar em prática a tese de Cardoso, várias vezes repetida no livro: que a marginalização dos brasileiros negros só será superada com a ampliação da sua representatividade nas instâncias decisórias do poder.
Esse processo, contudo, não é nem um pouco simples, alerta o autor. Ao longo de nossa história, já dizia Edson Cardoso num texto de 2008, o discurso em favor da diversidade racial foi encampado por muitos partidos, mas muito mais com o propósito de atrair os votos dos eleitores pretos do que de batalhar para o aumento da bancada de parlamentares de pele negra - e isso vale inclusive para a esquerda.
Conversando com representantes da Coalizão Negra por Direitos durante o evento, pude constatar um misto de excitação com a mobilização para o lançamento das campanhas e uma apreensão quando ao efetivo apoio que receberão dos partidos aos quais estão associados. Apesar das manifestações de apoio das cúpulas partidárias, os pré-candidatos pretos ainda não têm garantia sobre o quanto receberão de recursos dos fundos partidário e eleitoral para custear suas campanhas.
A preocupação é legítima. Segundo meus cálculos, deputados federais que tentaram a reeleição em 2018 (quase todos homens e brancos) receberam em média R$ 1,2 milhão de seus partidos. Candidatos brancos novatos tiveram uma cota bem menor: R$ 133,8 mil. Para os candidatos negros novatos, porém, o valor foi ainda menor: apenas R$ 42,8 mil em média. Esses dados já explicam bastante porque temos tão poucos negros no Congresso Nacional.
Como diria Edson Cardoso, “os negros constroem nos partidos uma causa sem substância; [...] eles [os candidatos negros] carreiam votos para a eleição dos outros [os políticos brancos]”.
Oxalá o destino da Coalização Negra por Direitos seja diferente nas eleições deste ano.
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