No século 18, ironizando a filosofia de Leibniz, Voltaire criou o Dr. Pangloss, uma Cassandra com o sinal trocado, empenhado em nos convencer de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Na História brasileira, até o limiar da 2.ª Grande Guerra, tivemos muito mais Cassandras que Panglosses, e não por acaso. Ameno em alguns, virulento em outros, nosso cassandrismo foi elaborado por uma plêiade de brilhantes historiadores e ensaístas. Tributário da cultura ibérica, colonizado por Portugal, atrelado à monocultura, o futuro brasileiro pouco ou nada teria de promissor. Sua variante talvez mais aguda foi a formulada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936). Para ele, o que nos condenava era nossa incapacidade de construir um Estado digno de tal nome: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina”.
No pós-guerra abrimos espaço para um panglossianismo moderado, aderindo ao “desenvolvimentismo” que começava a empolgar todo o Terceiro Mundo. Aceitamos a tese de Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958) segundo a qual a herança portuguesa não seria propriamente a inexistência de um Estado. Tínhamos um poder central poderoso, mas patrimonialista. Patrimonialismo, como sabemos, é aquele tipo de organização política em que o rei distribui todos os ativos valiosos e as melhores oportunidades de enriquecimento a seus apaniguados. Melhor que nada, quem não tem cão caça com gato. No mesmo ano, com sua celebrada Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado robusteceu substancialmente nosso mirrado panglossianismo. Um poder central capaz de planejar a economia era do que precisávamos para implantar a industrialização substitutiva de importações, que nos conduziria à terra prometida.
E assim fomos em frente, com certos guizos falsos da alegria aliviando nossos sofrimentos. Justiça seja feita, atingimos alguns objetivos importantes, como a expansão do agronegócio. Mas erramos – ou perpetuamos erros monumentais –, como a “industrialização em marcha forçada” do general Ernesto Geisel e a subsequente “década perdida”; a obscena desigualdade social; um sistema de ensino calamitoso; uma situação sanitária indescritível, com quase 50% dos domicílios sem ligação com a rede pública de esgotos e o mosquito Aedes aegypti passeando por toda parte, de São Paulo para cima; e, agora, uma radicalização política estúpida, pano de fundo para uma perigosa deterioração das instituições de governo, nos três Poderes.
A verdade nua e crua é que já não compreendemos o país em que vivemos. Tentamos entendê-lo com base na dicotomia esquerda x direita, enquanto não lhe proporcionamos o merecido sepultamento. Ignorando que, mesmo nos países mais adiantados da Europa, a parcela dos eleitores capaz de balbuciar algo inteligível sobre tal dicotomia não chega a 20%, dizemos, sem nenhum rubor, que Lula é de esquerda (o esquerdista dos sonhos do sistema financeiro) e que Jair Bolsonaro é (OK, não é mais) um liberal de direita. E o coronavírus, é de direita ou de esquerda?
Enquanto nos abeberamos em tais sandices, continuamos a não perceber quantos graves problemas – velhos e novos – se vão acumulando. O papel das Forças Armadas como instituições nacionais, que julgávamos bem estabelecido desde os anos 30 do século passado, começa a perder nitidez à medida que o presidente Jair Bolsonaro convoca numerosos oficiais-generais para cargos administrativos. Para encurtar uma longa história, o fato é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”: para alcançar o nível atual da Grécia precisaremos de um crescimento médio anual de 2% em nossa renda per capita.
Nossa obtusidade parece ainda maior quando nos voltamos para o sistema político e para a máquina administrativa. Vituperamos diariamente o patrimonialismo português, não percebendo que ele secretou dois produtos igualmente nefastos. De um lado, a corrupção Odebrecht size. De outro, uma variante “democrática”, o corporativismo generalizado, ou seja, uma infindável trama de interesses estreitos, insuscetível de agregação. O antídoto para o corporativismo é, em tese, o partido político, mas um país ter três dúzias de partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa. É como somar mais trinta e tantos grupos corporativos aos anteriormente existentes. Parado na “armadilha do baixo crescimento”, é evidente que o Brasil não vai ficar. Se não formos para a frente, iremos para trás, e o cenário do regresso não será para almas frágeis.
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