Há muitos projetos bem montados no país para diminuir a violência letal entre os homens jovens, mas esta continua aumentando.
Simultaneamente, há a interpretação dada por movimentos sociais que denunciam o extermínio dos jovens negros no Brasil. A afirmação é feita como se houvesse uma política oficial, explícita e persistente de matar jovens negros, uma política racista e de crime contra a Humanidade. Mas nenhuma política de extermínio foi implementada aqui. No máximo, há efeitos não intencionais de políticas repressivas praticadas por policiais mal preparados em governos dirigidos por políticos indiferentes ao destino dos cidadãos mais pobres. As palavras têm importância simbólica. Ao insistir que se trata de genocídio não se está, sem intento, impossibilitando relações menos conflitivas entre moradores, jovens ou não, e policiais?
Não se pode negar o morticínio de homens jovens negros no Brasil. Falar das mortes cometidas por agentes do Estado é de crucial importância para termos uma polícia comprometida com o Estado de direito que não abuse do uso da força, especialmente das armas que legalmente portam. A participação das polícias nessas mortes representa uma vergonha para todos os que querem o Estado de direito consolidado no país. No entanto, falar apenas delas provoca não só uma grave distorção dos fatos, mas também o fortalecimento de atitudes reativas de policiais que se sentem injustamente culpados pelas mortes que eles sabem ter outros perpetradores. Não estará estimulando o excesso de flagrantes forjados como tentativa de se precaver de acusações? As denúncias assim postas, feitas há tantos anos, conseguiram resolver o problema da segurança pública? O peso das culpas, postas nos ombros dos policiais que já gritam que só a polícia não resolve, ficou insuportável.
É preciso enfrentar o contexto social em que jovens se matam entre si por participarem de bocas de fumo, galeras ou facções que criam um inimigo odiado e desumanizado na figura do “alemão”, que mora na área dominada pela outra facção.
É a hora de fazer a crítica da polarização em curso no país, dividindo-o de cabo a rabo. Dualizou-se e rachou-se o país em dois pedaços inimigos, incapazes de interagirem e conversarem. No calor das emoções, foi-se do agônico para o antagônico, onde a possibilidade de escutar o outro, de ter compaixão pelo seu sofrimento, desapareceu. Mas haverá um abismo intransponível entre brancos e negros, elite e povo, classe média e pobres?
Para reformar a segurança pública no país, será preciso desconstruir falsas polaridades porque, segundo inúmeros estudos internacionais, é a construção do outro como inimigo desumanizado que motiva um ser humano a se armar e matar outro ser humano. Nos anos pesquisando jovens vulneráveis do Rio de Janeiro, deparei-me com a definição de um inimigo ameaçador que justifica os ataques letais contra ele. É com base nessa construção imaginária que os meninos da favela se transformam em traficantes soldados. É com ela que os policiais, fardados ou não, se transformam em policiais guerreiros. Para isso, contam com a simbologia e a eficácia de armas de fogo que matam rápida e eficazmente, dando aos que as usam a sensação de poder sobre a vida e a morte dos outros. Nada mais atraente para os homens em busca de afirmação e poder. Nada mais ilusório, pois quem usa armas é alvo preferencial de tiros.
Podemos enfrentar a disseminação do etos guerreiro entre nós com três iniciativas, de modo a consolidar a segurança pública derivada da cidadania.
Precisamos exigir mais controle e investigação sobre a circulação das armas de fogo no país. Como não se montou uma Operação Lava-Jato para investigar os comerciantes legais e ilegais de armas ou uma Operação Lei Desarmada para fiscalizar os que as portam em locais públicos? São elas que trazem enorme prejuízo ao país em vidas e horas de trabalho perdidas, agravos resultantes do estresse pós-traumático para os quais o SUS ainda não tem preparo nem verba suficiente por causa dos gastos com os feridos e mortos por elas.
Carecemos de ações culturais e educativas contínuas para desconstruir o etos guerreiro, responsável pelo uso impulsivo que fazem delas jovens e policiais. É o maior desafio, pois o medo de morrer armou mãos e cabeças e justificam as mortes dos inimigos imaginários. Os efeitos na formação subjetiva dos que se tornam agentes, mas também vítimas da violência armada, só pode ser enfrentado com a cooperação de todos: agentes da segurança, saúde e educação, artistas, jornalistas, técnicos de diversas áreas, demais profissionais que lidam com público.
Devemos mudar a política de drogas no país, que demoniza algumas substâncias enquanto outras ainda mais danosas são legalmente comercializadas. Isso estigmatiza o usuário de drogas a ponto de tornar justificável a sua perseguição e morte por grupos extralegais de segurança e policiais. Isso transforma o traficante num criminoso de alta periculosidade, pois o tráfico de drogas é crime hediondo e inafiançável como o terrorismo, embora seja basicamente o comércio de mercadoria desejada por consumidores. Não é a droga que mata, é a proibição que incentiva a corrida armamentista entre grupos de traficantes e a guerra entre estes e policiais, aumentando o medo e a insegurança que tornam desejáveis grupos extralegais e paramilitares.
Armadilhas que temos de desmontar.
Alba Zaluar
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