quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A terceira margem do rio

Para Eduardo Raposo

Li, outro dia, no “The New York Times” uma chamada cujo título me surpreendeu: “O que sabemos e o que não sabemos sobre...” algum assunto. Não era sobre o terrorismo árabe ou o fascismo de Donald Trump, mas sobre o preconceito racial segregacionista contra os negros, cujo retorno aparece como um enigma numa sociedade dominada pelo pensamento evolucionista-utilitário, no qual se acredita que um presente supostamente avançado extermina as mazelas do passado.

Do ponto de vista deste nosso Brasil, onde falcatruas legais convivem com mentiras verdadeiras, ler no maior jornal da sociedade que instituiu a cosmologia do certo ou do errado, do culpado ou do inocente, do preto ou branco e tem horror à dúvida — ou a ponte — que liga dois lados, é uma surpresa. Uma grata surpresa.

Pois há situações em que o paradoxo engloba a certeza e nas quais mentir é o melhor negócio.

Resultado de imagem para a terceira margem do rio

É claro que o certo e o errado existem e, em todo tempo e lugar, são definidos e devem ser buscados. Mas quando eles se embolam, não há como enfrentar a dúvida com a régua digital do falso ou verdadeiro! O incômodo promovido pela incerteza, aliás, é maior quando os dois lados são bem separados, e há vantagem em mantê-los assim.

No Brasil de hoje, há um enorme conforto no radicalismo chique, como nos tempos do rei era comum ir para o céu construindo uma igreja. Nada mais rotineiro do que reprimir a dúvida com uma supercerteza que se transforma numa acusação e define o bem e o mal.

A fantasia do “somos vítimas e vocês, golpistas!” é a formula dessa repressão. Pela politização crassa, ela tenta apagar a vergonhosa roubalheira promovendo o bloqueio da dúvida por meio do populismo. É como dizer: não entendo, não quero entender e condeno os que estão além dessas margens.
____________

Todos nascemos numa margem. Só um santo ou um poeta como Guimarães Rosa sabem como o meio do rio pode virar uma terceira margem. Margem é fronteira e limite. Fixados na margem, perdemos de vista não somente o outro lado, mas o rio.

Um mundo com muitos fatos e pouca sabedoria inventou formulas rudes e simplórias que aumentam as incertezas porque é sempre mais fácil acusar do que compreender. “Contra golpista ou comunista, faça uma lista!” Fazer ou virar fascista é muito mais fácil do que compreender a nossa burocracia do terror, a nossa ética de intimidação e do medo que tem liquidado amizades e impedido a poesia e a generosidade das alternâncias.

As margens que dividem são os dois lados de um mesmo rio. Se não fizermos essa leitura, bloqueamos o nosso entendimento e — escolhendo uma das margens — partimos para o confronto, que impede a ponte e o compreender que chega com a disposição de transitar para o outro lado, o que exige levar a sério o rio na profundidade de suas correntezas. O meio é o lugar do “nem um nem outro”, que dificulta a acusação. Todo fascista odeia o compreender mas ama arrolar nomes e fazer listas.

Eu sei que o Brasil é menos complicado e não sei se ele é mais complexo do que as suas representações. Eu tenho sugerido que o “Brasil” lido como governo é uma “realidade” menos amada do que o Brasil “sociedade” expresso por um time de futebol, pelo carnaval ou por uma poesia do Affonso Romano de Sant'Anna. Distinguir tais dimensões como as margens de um mesmo rio é importante. Teria tal intuição inspirado essa “terceira margem do rio” de Guimarães Rosa quando ele imaginou um rio com três margens?

Sabemos que o meio relativiza as margens. Visto do meio, o Brasil é um belo rio. Visto como um corpo político de uma de suas margens, ele é uma vergonha, como diz acertadamente Boris Casoy. Seria uma margem de direita e a outra de esquerda? Uma do atraso ou da “ordem” e a outra do “progresso”? E se você mudar de rumo e nadar contra a corrente, as margens não trocam de lado?

A dualidade entre ordem (direita) ou progresso (esquerda) poderia ser ultrapassada pela “terceira margem” desde que o movimento histórico-ideológico saísse do lugar. Mas as coisas não saem facilmente das margens onde fincam seus ancoradouros. Por outro lado, achamos que o rio corre numa só direção, embora alguns rios mitológicos tenham correntes duplas, como ensina o mago dos mitos e do olhar distanciado, Claude Lévi-Strauss. Num sentido preciso, tais cursos d’água revelam uma surpreendente coexistência.
____________

Sejamos realistas: você, leitor, já tentou atravessar a nado algum rio? Eu quase morri aos 26 anos nas aguas azuis do Rio Tocantins, de cuja poderosa correnteza consegui me escapar construindo, como o herói do conto de Guimarães Rosa, uma salvadora “terceira margem”. Graças a ela, pude ser resgatado pelos meus salvadores.

PS: Esbocei esta crônica uns 17 dias antes do afogamento de Domingos Montagner, para cuja família eu envio o solidário afeto de quem também viveu uma perda brusca e imperdoável. Há mais na vida intelectual do que pensamos. Literatura não leva ao céu das utopias, mas salva criando essas “terceiras margens”.

Roberto DaMatta 

Nenhum comentário:

Postar um comentário