O exemplo mais contundente dessa afirmação é o documento que oficializa a descoberta ou achamento de nossa terra por Cabral. Nessa carta-certidão, o escrivão da frota reitera ao rei sua lealdade para, em seguida, solicitar um favor. Vale citar o original:
— Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d’Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.
Nesse palaciano pedido de favor, testemunhamos como o costume fabricado pelo relacionamento pessoal obviamente particular — chamado “empenho” em Portugal — engloba a notícia oficial. É como se o oficial não pudesse se separar (como ocorre até hoje) do pessoal. O particular não se isola do universal, como seria o caso nas formas modernas de dominação. O tarifaço trumpista não tem simpatias ou jeitinhos.
Comunica-se ao rei um acontecimento feliz, e seu escrivão — saindo de seu papel institucional — aproveita o evento feliz para pedir um favor para sua filha e seu genro. O particular da casa derrete-se ao oficial, caracterizando uma intrusão vedada pela lógica burocrática existente, mas, como tenho aqui insistido, permanente nos sistemas relacionais.
Numa monarquia, o rei é a fonte da lei; numa burocracia, até mesmo os burocratas que engendram regras são, como diz Max Weber, obrigados a segui-la. Esse, observo enfaticamente, é um detalhe permanentemente reprimido, por isso sistematicamente reformulado na vida pública brasileira.
O rompimento da lei por um costume — um gesto de esperta consideração — é justamente o que permanece em nosso espaço de “modernização”. Nele, mudamos regimes imaginando ingenuamente que formas de governo mudam hierarquias e favores relacionais estabelecidos no código das reciprocidades do parentesco e da amizade. O que Caminha realizou na carta caracteriza o que chamamos de “política”, que os jornais de hoje noticiam e elaboram.
Entre Estado e sociedade; leis e costumes, deveres ligados a cargos públicos e simpatias pessoais, não conseguimos abandonar o relacional. A impessoalidade da lei que concretiza os interesses da coletividade é para os outros e, com certeza, para os inimigos.
A intrusão do familístico (a tal fulanização de um saudoso FH) no mundo público é uma forma de prêmio ou vingança. Nosso estilo político trata tal intrusão como dimensão legítima da “política” que, hoje (graças à revolução digital) promove impasse, ineficiência e atraso. Antigamente desvios “saíam no jornal”, hoje pipocam nos iPhones, destruindo segredos particularistas. Tal novidade demanda uma indesejável sinceridade, esse traço avesso a nossa concepção da esfera “política”. Para nós, ser político é ser Pedro Malasartes, como digo em meu velho livro “Carnavais, malandros e heróis”.
O favor do apadrinhamento confirma o axioma de Oliveira Vianna, segundo o qual temos coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo. Somos universalistas e igualitários no papel que afirma — a lei vale para todos! — e somos particularistas nas solidariedades que devemos aos familiares e amigos. Governamos o Estado que é da “rua” — e seria de todos — se relativizássemos nossas simpatias.
Se você duvida, leia este jornal!
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