quinta-feira, 10 de abril de 2025

O passado reprimido do Brasil

O Brasil certamente mudou, mas somos muito incomodados por permanências contraditórias reprimidas na mudança. Testemunhos da incompetência decorrente da ausência de um olhar crítico sobre as simpatias pessoais responsáveis por um sistema jurídico kafkiano, claramente desenhado para anistiar e anular corruptos confessos e inibir conflitos de interesses. Tudo isso produz a certeza desanimadora de que leis e instituições que valeriam para todos são passíveis de particularização se o criminoso tiver o benefício de estar do nosso lado.


O exemplo mais contundente dessa afirmação é o documento que oficializa a descoberta ou achamento de nossa terra por Cabral. Nessa carta-certidão, o escrivão da frota reitera ao rei sua lealdade para, em seguida, solicitar um favor. Vale citar o original:

— Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d’Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

Nesse palaciano pedido de favor, testemunhamos como o costume fabricado pelo relacionamento pessoal obviamente particular — chamado “empenho” em Portugal — engloba a notícia oficial. É como se o oficial não pudesse se separar (como ocorre até hoje) do pessoal. O particular não se isola do universal, como seria o caso nas formas modernas de dominação. O tarifaço trumpista não tem simpatias ou jeitinhos.

Comunica-se ao rei um acontecimento feliz, e seu escrivão — saindo de seu papel institucional — aproveita o evento feliz para pedir um favor para sua filha e seu genro. O particular da casa derrete-se ao oficial, caracterizando uma intrusão vedada pela lógica burocrática existente, mas, como tenho aqui insistido, permanente nos sistemas relacionais.

Numa monarquia, o rei é a fonte da lei; numa burocracia, até mesmo os burocratas que engendram regras são, como diz Max Weber, obrigados a segui-la. Esse, observo enfaticamente, é um detalhe permanentemente reprimido, por isso sistematicamente reformulado na vida pública brasileira.

O rompimento da lei por um costume — um gesto de esperta consideração — é justamente o que permanece em nosso espaço de “modernização”. Nele, mudamos regimes imaginando ingenuamente que formas de governo mudam hierarquias e favores relacionais estabelecidos no código das reciprocidades do parentesco e da amizade. O que Caminha realizou na carta caracteriza o que chamamos de “política”, que os jornais de hoje noticiam e elaboram.

Entre Estado e sociedade; leis e costumes, deveres ligados a cargos públicos e simpatias pessoais, não conseguimos abandonar o relacional. A impessoalidade da lei que concretiza os interesses da coletividade é para os outros e, com certeza, para os inimigos.

A intrusão do familístico (a tal fulanização de um saudoso FH) no mundo público é uma forma de prêmio ou vingança. Nosso estilo político trata tal intrusão como dimensão legítima da “política” que, hoje (graças à revolução digital) promove impasse, ineficiência e atraso. Antigamente desvios “saíam no jornal”, hoje pipocam nos iPhones, destruindo segredos particularistas. Tal novidade demanda uma indesejável sinceridade, esse traço avesso a nossa concepção da esfera “política”. Para nós, ser político é ser Pedro Malasartes, como digo em meu velho livro “Carnavais, malandros e heróis”.

O favor do apadrinhamento confirma o axioma de Oliveira Vianna, segundo o qual temos coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo. Somos universalistas e igualitários no papel que afirma — a lei vale para todos! — e somos particularistas nas solidariedades que devemos aos familiares e amigos. Governamos o Estado que é da “rua” — e seria de todos — se relativizássemos nossas simpatias.

Se você duvida, leia este jornal!

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