Parte-se a frágil película daquilo a que chamamos “civilização”, “democracia”, “solidariedade”, respeito pelos outros, o shakespeariano “milk of human kindness” e aí vem o animal, com os dentes de fora, ou o rebanho, ou a alcateia. Aqui é que entra o iluminista, a ideia de que o único antídoto para esta animalidade é aquilo a que chamamos “cultura” no sentido mais lato do termo, ou seja, a tentativa na sociedade de criar uma mediação para a violência da animalidade natural, ou seja, a única possibilidade de encontrar em sociedade o modo de materializar os contravalores da violência, o equilíbrio, a educação, o conhecimento, o bem-estar social, para a felicidade terrestre, mas também dos valores da resistência, da revolta contra a injustiça, da equidade e da paz.
Nesta perplexidade contraditória, penso que Hobbes ganha sempre a longo prazo, mas Rousseau dá-nos momentos frágeis em que a humanidade, quase sempre parte da humanidade, pode atravessar o seu período de vida melhor do que no passado. Na minha vida já conheci alguns desses momentos, a paz europeia desde 1945 até ao início do conflito jugoslavo, a melhoria das condições de vida em quase todo o mundo, melhor medicina, maior conhecimento do Universo, a ida à Lua, a queda do Muro de Berlim, o 25 de Abril, a democracia em Portugal, a diminuição de algumas violências históricas: a tortura, a pena de morte, a violência contra as mulheres, etc. Repare-se que escrevi “diminuição”.
Em 2025, tudo isto está a desabar, e Hobbes a ganhar. Personagens como Trump, Musk, Milei, Orbán, Erdogan, Putin, Bibi são os homens do momento, os que estão com a “seta da história”. Ao lado deles, a senhora Le Pen é uma figurinha. Os EUA mudaram de campo e a sua democracia está a desaparecer, a mentira tornou-se tão comum que a verdade está no exílio. Nas guerras injustas, como a da Ucrânia invadida pela Rússia, o nome orwelliano da rendição imposta pela traição e pela força é “paz”. Na Palestina, assiste-se quase sem comoção a todas as violências e crueldades, enredados em frágeis acusações de antissemitismo para matar habitualmente velhos, mulheres e crianças e, de vez em quando, um terrorista do Hamas. A democracia está a erodir-se por dentro entre deslumbramentos tecnológicos e lucros mais amorais do que é habitual. Todas as mediações tradicionais que funcionavam ao lado das democracias, família, igreja, partidos, sindicatos, mídia de referência, saber científico, primado da lei, estão a ser substituídas pela selvajaria das redes sociais, pela desinformação e pelo espelho do mal, muito mais poderoso do que o bem. As novas gerações têm como modelo os brutos e as bonequinhas com batom aos saltos no Tik-Tok.
Nada disto é novo na história, e sempre deu aos milhões de homens e mulheres que viveram nesses tempos uma vida miserável, dura e cruel. É possível resistir? Claro que é, mas com mais coragem, determinação, astúcia e intransigência. E aceitar viver com mais riscos, mais dificuldades, mais sacrifício pessoal e colectivo, e acima de tudo sem saber se se vai ganhar. Até porque, nunca como hoje, apesar da cloaca das redes, é mais importante o método de influência dos anarquistas nas aldeias da Estremadura e Andaluzia: a propaganda pelo exemplo.
As Luzes iluminam, mas não garantem nada e é sempre mais difícil resistir sem ter qualquer garantia de se poder travar a Besta que somos nós. A mediação da “cultura”, no sentido lato de uma visão da vida e do mundo que canalize os conflitos para a lei e as instituições, que eduque para se conhecer e defender direitos, que mobilize para a solidariedade e não para o egoísmo, que produza leis e práticas que protejam os mais fracos, com a sanção dos abusos dos mais fortes, que perceba a força e a necessidade de igualdade, tudo isto é o caminho. O problema principal é que tudo isto é artificial, feito pelos homens e mulheres, contra o que é natural, a brutalidade.
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