Mas é preciso lembrar que a vítima preferencial tem pele negra. O Atlas da Violência de 2018, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que a população negra está mais exposta à violência no Brasil. Os negros representam 55,8% da população brasileira e são 71,5% das pessoas assassinadas. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de indivíduos não negros (brancos, amarelos e indígenas) diminuiu 6,8%, enquanto no mesmo período a taxa de homicídios da população negra aumentou 23,1%. Segundo dados da Anistia Internacional, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, o que evidencia que está em curso o genocídio da população negra, sobretudo jovens.
Infelizmente, o assunto só ganha destaque no debate público quando um caso muito violento chega aos noticiários, como o brutal assassinato de Evaldo dos Santos por agentes do Exército, no Rio de Janeiro. No dia 7 de abril de 2019, o carro em que Evaldo e sua família estavam foi alvejado por militares. Inicialmente divulgou-se que foram disparados 83 tiros, mas o total chegou a 257. Na época, muitas pessoas se manifestaram diante desse absurdo. O que muitas dessas pessoas talvez ignorem é que esse não foi um caso isolado: ele integra uma política de segurança pública voltada para a repressão e o extermínio de pessoas negras, sobretudo homens.
Na maior parte das vezes, o Judiciário é uma extensão da viatura policial: não se exige uma investigação detalhada nem se admite o contraditório para quem é acusado pela seletividade do sistema. No entanto, mesmo com tantos casos comprovados de abuso policial, que resultam em prisões descuidadas e injustas, a naturalização dessa violência levou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a ter como súmula—isto é, uma decisão que de tantas vezes proferida se torna um entendimento cristalizado—admitir como elemento suficiente para a condenação apenas a palavra dos policiais que efetuaram a prisão. A conhecida súmula 80 reflete um entendimento comum a todos os tribunais do país. Segundo um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça, entre março de 2016 e janeiro de 2018, os policiais foram as únicas testemunhas em 71,14% dos processos envolvendo tráfico. Não se trata aqui de dizer que nenhum policial é digno de crédito, porém um julgamento não pode se pautar única e exclusivamente pela palavra de quem prendeu, pois se corre o risco de tornar o policial juiz e carrasco do caso.
Historicamente, o sistema penal foi utilizado para promover um controle social, marginalizando grupos considerados “indesejados” por quem podia definir o que é crime e quem é o criminoso. No Brasil, foram várias as legislações que visavam criminalizar a população negra, como a Lei de Vadiagem, de 1941, que perseguia quem estivesse na rua sem uma ocupação clara justamente numa época de alta taxa de desemprego entre homens negros.
Hoje, a chamada “guerra às drogas” serve como pretexto para uma guerra contra a população negra. O tema se tornou ainda mais urgente após a Lei n. 11.343 de 2006, que estabeleceu uma diferenciação subjetiva entre traficante e usuário. O que teoricamente parecia ser um avanço na verdade contribuiu para a explosão da população carcerária: isso porque quem define quem é traficante e quem é usuário é o juiz, o que é feito, muitas vezes, com base na discriminação racial.
Em 2015, um homem negro teve sua condenação a quatro anos e onze meses de prisão pelo “tráfico” de 0,02 grama de maconha mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Ele já havia sido julgado por um juiz de primeira instância e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O exemplo é ilustrativo da produção em massa de uma população carcerária condenada por quantidades muito pequenas de substâncias ilícitas; estão presos, na verdade, por sua cor. O critério subjetivo acentua a já profunda discriminação racial. Para comparação, não há violência policial em ambientes ricos, como festas universitárias, mesmo sabendo-se do uso de drogas nesses lugares, como ocorre nas periferias. Há, portanto, um contexto de criminalização da pobreza.
Sabemos que hoje dois em cada três presos no Brasil são negros. Sabemos também que o tráfico lidera as tipificações para o encarceramento: 26% dos homens estão presos por tráfico, chegando a 62% no caso das mulheres.
Também vale destacar que em quinze anos a prisão de mulheres aumentou 567,4%. Segundo o relatório “‘MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal”, desenvolvido pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), 68% das encarceradas são negras, a maioria é mãe, não possui antecedentes criminais e tem dificuldade de acesso a empregos formais. Como afirma Carla Akotirene em sua dissertação de mestrado, Ó pa í, prezada! Racismo e sexismo institucionais tomando bonde no Conjunto Penal Feminino de Salvador, a prisão precisa ser analisada na contemporaneidade sobre alicerces interseccionais de raça, classe e gênero. Akotirene identifica, na perspectiva das mulheres, um aspecto de sexismo e racismo institucionais em concordância com a inclinação observada da polícia em ser arbitrária com o segmento negro sem o menor constrangimento, de punir os comportamentos das mulheres de camadas sociais estigmatizados como sendo de caráter perigoso, inadequado e passível de punição.
Ainda segundo o relatório “MulhereSemPrisão”, o Poder Judiciário brasileiro prende essas mulheres sem oferecer medidas alternativas. A feminista e militante antiproibicionista e antipunitivista Juliana Borges, tomando como base o trabalho da pesquisadora e advogada Luciana Boiteux, denuncia violações de direitos humanos contra essas mulheres:
No caso das mulheres, é muito comum o relato de buscas e “apreensões”, invasões, sem mandado de busca, em seus domicílios, tortura e humilhação para obter informações que sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão pela proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões quando transportando pequenas quantidades, sendo que muitas são intimidadas a fazer isso. A imensa maioria dessas mulheres é ré primária, ou seja, jamais teve passagem pelos registros policiais.
Como diz a advogada estadunidense Michelle Alexander:
A confusão da negritude com o crime não ocorreu naturalmente. Ela foi construída pelas elites políticas e midiáticas como parte de um amplo projeto conhecido como Guerra às Drogas. Essa confusão serviu para fornecer uma porta de saída legítima para a expressão do ressentimento e do animus antinegros — uma válvula de escape conveniente agora que as formas explícitas de preconceito racial estão estritamente condenadas. Na era da neutralidade racial, já não é permitido odiar negros, mas podemos odiar criminosos. Na verdade, nós somos encorajados a fazer isso.
Há vários textos para se aprofundar no debate sobre segurança pública, política de drogas e antipunitivismo. O tema é complexo, porém é essencial para entender a realidade do país, especialmente quando temos elementos que indicam que está ocorrendo um genocídio da população negra.
Numa sociedade violenta como a nossa, é natural sentirmos medo. Em especial dessa violência generalizada que o próprio Estado promove—e por isso devemos denunciar a violência policial. Porém, é muito triste constatar que, por outro lado, o Brasil é o país onde mais morrem policiais. A maioria deles vem da classe trabalhadora, muitas vezes dos mesmos lugares onde jovens negros estão sendo assassinados. Se a polícia é o braço armado do Estado opressor, é também um dos lados que cai com essa guerra.
Como já afirmou a socióloga Denise Ferreira da Silva, o assassinato dos jovens negros deveria criar uma crise ética na sociedade brasileira. No entanto, não há revolta com tanto sangue derramado, enquanto há enorme comoção na mídia quando a violência tira a vida de uma pessoa branca. Devemos nos perguntar por que não se dá o mesmo valor a essas vidas. Nos Estados Unidos, após a absolvição do policial George Zimmerman, que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin, surgiu o importante movimento Black Lives Matter [Vidas negras importam]. Em 2014, o grupo ficou conhecido nacionalmente depois das manifestações contra os assassinatos dos jovens Michael Brown, em Ferguson, e Eric Garner, em Nova York. Desde então, o movimento vem fazendo um trabalho de denúncia da violência policial, questionando políticos e incitando o debate público.
No Brasil, existem vários movimentos e organizações engajadas em questionar o modelo punitivista e em combater abusos por parte do Estado, como a Iniciativa Negra, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o projeto Movimentos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros. Há várias maneiras de apoiar o trabalho dessas pessoas, quer seja financeiramente, divulgando as iniciativas ou comparecendo a eventos e manifestações.
Djamila Ribeiro, "Pequeno manual antirracista"
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