Naquele momento, a questão que me atravessava era: como contribuir não apenas para a denúncia do genocídio em curso, mas também para o aprimoramento do debate público, tão viciado pela perspectiva sionista? Como enfrentar os estereótipos e caricaturas que desumanizam os palestinos — e os árabes, em geral — e que servem, na maior parte do tempo, para justificar a violência brutal a que estão submetidos há décadas? Cada pessoa usa as ferramentas que tem à disposição. As minhas são unicamente — feliz ou infelizmente — as palavras.
Foi assim que nasceu o livro "Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina", que organizei em 2022 pela Editora Elefante, reunindo mais de 40 autoras e autores comprometidos com a causa palestina. Foi com esse mesmo espírito que também editei — sob a supervisão de Laura Di Pietro — e organizei — com Atef Abu Saif e Abd Al-Salam Atari — o primeiro volume da coleção Diários de Gaza, a que dei o sugestivo título de A memória é uma casa indestrutível, que conta com textos de 14 mulheres e homens palestinos que vivem em Gaza.
Acredito no poder dos livros — não necessariamente de transformar a realidade de forma imediata, mas de nos transformar como pessoas. Livros criam brechas: abrem caminhos para mudanças de consciência, para a escuta, para a empatia. Aproximam pessoas do sentimento de justiça e, sobretudo, aproximam as pessoas umas das outras.
Comerciantes vendem uvas, romãs e passas no mercado (1920-1933)
É por isso que iniciamos agora este especial Biblioteca Palestina: uma jornada guiada por livros, um programa de leitura que busca nos aproximar da Palestina e dos palestinos, e que nos ajude a construir as conexões necessárias para compreender, denunciar e combater o genocídio em curso. Espero que este percurso literário seja um guia para quem ainda não sabe por onde começar, mas deseja conhecer mais sobre a Palestina. E que seja, também, um espaço de encontro entre leitoras e leitores experientes, estudiosos e todas as pessoas interessadas na história, na literatura, na memória e na luta anticolonial do povo palestino.
Iniciamos nossa jornada com um dos mais importantes escritores palestinos de todos os tempos — e um dos maiores poetas da literatura mundial: Mahmud Darwich, e seu primeiro livro em prosa, publicado em 1973, Diário da tristeza comum (no Brasil, pela editora Tabla, em 2024). Mas por que começar por este título, e não por algum dos muitos livros que oferecem uma síntese da questão palestina, disponíveis nas livrarias?
Chegaremos a eles. No entanto, se eu tivesse que indicar um único livro capaz de articular os aspectos históricos da Palestina moderna com a dimensão subjetiva e poética de seu povo — ou seja, que una os processos históricos à experiência vivida dos sujeitos —, este Diário de Darwich, sem dúvida, seria o melhor primeiro passo que poderíamos dar.
Nascido em 1941 na aldeia de Albirwe — uma vila que foi destruída pelo exército israelense durante a Nakba de 1948 —, Darwich experimentou o exílio desde a infância, após sua família fugir para o Líbano para escapar da violência sionista. Ao retornar clandestinamente à Palestina pouco depois, sua condição passou a ser a de “ausente presente”, um termo usado pelo Estado de Israel para classificar palestinos deslocados internos, privados de direitos plenos sobre sua própria terra.
Essa marca de desenraizamento e resistência atravessa toda a sua obra poética e política. Ainda jovem, Darwich começou a publicar poemas em jornais árabes e logo se tornou um símbolo da luta nacional palestina por meio da poesia. Trabalhou como jornalista e editor, foi preso diversas vezes por suas palavras e, em 1970, partiu para o exílio, vivendo em Beirute, Moscou, Cairo, Paris e retornando para Ramallah, onde morreu em 9 de agosto de 2008, aos 67 anos, após complicações de uma cirurgia cardíaca.
Como já mencionamos, Diário da tristeza comum foi o primeiro livro de prosa de Mahmud Darwich. A obra reúne nove ensaios que entrelaçam memórias pessoais do autor com fragmentos fundamentais da história palestina. O primeiro texto, “A lua não caiu no poço”, é um mergulho na infância de Darwich, em que ele revive a experiência da expulsão e do exílio. Esse ensaio inicial constitui, portanto, uma excelente porta de entrada para a compreensão da Nakba — a catástrofe palestina de 1948, marcada pela destruição de vilas, o deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas e a impossibilidade do retorno.
Já nesse primeiro capítulo, Darwich formula uma pergunta que atravessará todo o livro: o que é a pátria? Trata-se de uma questão central para os palestinos, que vivem sob o paradoxo de possuir uma identidade nacional sem um Estado nacional reconhecido. É a partir dessa angústia que ele afirma: “Um lugar não é apenas uma área geográfica, é também um estado de espírito” (p. 24).
Ao longo dos ensaios, a ideia de “pátria palestina” assume múltiplas formas, deslocando-se entre paisagem, memória, língua, infância e ausência. Mas há momentos em que Darwich adota uma definição precisa, sobretudo quando confronta a narrativa colonial israelense de pertencimento: “O fato de os conquistadores se reproduzirem na terra de outro povo não lhes garante o direito de chamá-la de pátria” (p. 17).
Esse é um ponto nevrálgico do livro: ao longo da leitura, Darwich nos conduz por um mosaico de experiências e reflexões que tanto revelam quanto desmontam o caráter colonial da ocupação sionista na Palestina — um paradigma incontornável para qualquer debate honesto sobre a questão, ainda que frequentemente negado, inclusive em setores que se dizem progressistas.
No ensaio seguinte, “A pátria: entre a memória e a história”, a pergunta se aprofunda — “pátria” não é apenas um lugar fixo no mapa, assume um sentido movente, mutável e, sobretudo, profundamente político. De forma instigante, o texto se transforma em uma crítica contundente às práticas narrativas do Estado israelense, revelando como a disputa pela memória é, também, uma forma de guerra. Para Darwich, memória e história não são apenas registros do passado, mas territórios de enfrentamento.
“A cultura israelense insiste em saturar a memória dos cidadãos com o Holocausto na Europa, a fim de intensificar seus sentimentos de isolamento e alienação do resto do mundo. Esses sentimentos constituem uma parcela fundamental da psique e do temperamento israelense. Como resultado, o cultivo da memória israelense é dedicado a um único objetivo político: continuar lembrando ao povo que ele está sempre sujeito à aniquilação, e que retornar à ‘Terra de Israel’ e permanecer nela são as únicas garantias políticas e históricas de segurança — além de promover a reivindicação sionista da Palestina.” (p.44).
Sem dúvida, este é um dos textos mais poderosos do livro, pois oferece ao leitor chaves fundamentais para compreender o que está em jogo na relação colonial entre israelenses e palestinos. Darwich desmonta, logo de início, a ideia de uma simetria possível entre opressor e oprimido. Mas não se detém aí: sua investigação sobre o significado de “pátria” no contexto da disputa violenta pela memória o conduz a uma das definições mais sofisticadas que já li: “Quando você luta, você pertence. E a pátria é essa luta. Entre a memória e a mala não há solução senão a resistência.” (p. 56)
Caso ainda restem dúvidas sobre a assimetria da relação entre israelenses e palestinos — ou sobre o caráter colonial da ocupação sionista —, o próximo ensaio dissipa qualquer equívoco de forma definitiva. Em Diário da tristeza comum, que dá título ao livro, somos conduzidos por Darwich a uma série de fragmentos do cotidiano palestino. São 17 cenas aparentemente banais, triviais, rotineiras — mas que revelam, justamente por sua simplicidade, o horror e o absurdo que moldam a vida sob ocupação.
Ir ao mercado, escrever uma peça teatral, andar pela rua, comemorar o Ano-Novo, dormir, pegar um táxi, viajar, celebrar o próprio aniversário, alugar um apartamento, visitar a família, sonhar. Atos cotidianos, corriqueiros para muitas pessoas, tornam-se, para os palestinos, experiências carregadas de angústia, frustração e medo. Cada gesto banal carrega um gosto amargo — o peso de uma existência vigiada, controlada, interrompida.
É neste ensaio que mais se evidencia aquela característica já mencionada: a articulação entre a experiência subjetiva do indivíduo e a violência estrutural da história. Aqui, a tristeza comum — diária, repetida, silenciosa — deixa de ser um sentimento individual para se tornar um retrato coletivo, a marca da vida palestina sob o regime colonial. O título, longe de ser apenas lírico, nomeia uma condição histórica.
É à história que boa parte dos ensaios seguintes se dedica. “Quem mata cinquenta árabes perde um centavo” é a reflexão de Darwich sobre o massacre de Kafar-Qassim, ocorrido em 1956, quando 49 palestinos foram brutalmente assassinados por forças israelenses. Mas o horror não se encerrou nas mortes: os responsáveis pelo massacre foram “punidos” com o pagamento simbólico de uma moeda de um centavo. Darwich conclui, sem rodeios: “A matança a sangue-frio e a violência armada constituem a filosofia israelense” (p. 102).
Neste capítulo, torna-se evidente que a violência não é um desvio ocasional, tampouco um erro isolado de governos de extrema-direita. A violência é a própria estrutura que sustenta a arquitetura do sionismo. Como afirma o autor:
“Os crimes que Israel comete contra civis árabes, dos quais o massacre de Kafar-Qassim é um exemplo chocante, não decorrem de uma ‘má’ aplicação da ‘excelente’ herança sionista, mas sim de uma excelente aplicação da terrível herança sionista.” (p. 105)
E, como sempre em Darwich, a história retorna à terra. Ao fim do ensaio, depois do horror, reencontramos a pátria — agora como resistência encarnada: “O povo palestino sabe vingar seus mortos: agarra-se ao solo da pátria com unhas e dentes.” (p. 107).
Os ensaios seguintes abordam os acontecimentos que culminaram e se seguiram aos acontecimentos de junho de 1967 — episódio conhecido mundialmente como Guerra dos Seis Dias, mas que, para os palestinos, representa a Naksa (em árabe, “o retrocesso”): o marco da ocupação israelense da Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental, Colinas de Golã e Península do Sinai.
A Naksa aprofunda, de forma brutal, o processo iniciado em 1948 com a Nakba (“a catástrofe”), isto é, a criação do Estado de Israel e a expulsão de cerca de 750 mil palestinos. Se a Nakba representou o início do deslocamento forçado em massa, da destruição sistemática de centenas de vilarejos e da negação do retorno, a Naksa consolidou a ocupação militar de quase toda a Palestina histórica e deu início à política de assentamentos ilegais, especialmente na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.
No ensaio “A alegria quando trai”, Darwich expõe a instabilidade e a fragilidade de qualquer ideia de paz ou normalidade para os palestinos, que são ciclicamente confrontados com a perda de território, de vidas e, sobretudo, da possibilidade concreta de constituir um Estado.
Os textos de Diário da tristeza comum são assustadoramente atuais. Denunciam a anterioridade da tragédia palestina, o que desmonta a narrativa de que a história teria começado em outubro de 2023. Essa atualidade se torna ainda mais chocante ao lermos o ensaio “Silêncio por Gaza”. Mas, mais do que o espanto, esse texto oferece uma lição que deveríamos aprender antes de emitir opiniões apressadas sobre a Operação Dilúvio de Al-Aqsa, lançada pelo Hamas em 7 de outubro de 2023:
“O segredo de Gaza não é mistério: suas massas estão unidas na resistência popular. Ela sabe o que quer: expulsar o inimigo das roupas dela. Em Gaza, a relação entre resistência e massas é a de carne e osso, e não a de professor e aluno.” (p. 138)
É importante lembrar que, quando Darwich escreveu essas palavras, o Hamas ainda nem existia — sua fundação só ocorreria em 1987. Ainda assim, a chave para compreender a realidade palestina já estava ali, clara e irrefutável: “Os únicos valores que uma pessoa que vive sob ocupação pode defender são os da resistência à ocupação.” (p. 136). Que essa lição não seja ignorada.
Ao final do livro, mais uma pergunta nos é lançada: “O peso da questão palestina é maior do que o que qualquer ombro pode suportar. Então por que razão deveríamos carregá-lo sozinhos?” (p. 161). Encerrando o livro com esse questionamento, Mahmud Darwich não apenas nos interpela — ele nos convoca. Convoca a estar ao lado do povo palestino em sua luta por libertação, justiça e dignidade. Não é possível, após a leitura destes ensaios, ainda restarem dúvidas sobre a justeza da causa palestina e sobre a urgência de sua defesa.
Enquanto escrevo estas palavras, doze ativistas humanitários — entre eles o brasileiro Thiago Ávila — se aproximam da costa de Gaza, a bordo da Flotilha da Liberdade, levando alimentos, medicamentos e suprimentos médicos ao povo palestino, após mais de 600 dias da etapa mais letal do genocídio em curso. Mas eles não carregam apenas itens essenciais, criminosamente negados: levam também a resposta à pergunta de Darwich. Os palestinos não carregarão esse fardo sozinhos.
Além da bela tradução da professora Safa Jubran e do tocante posfácio do escritor Milton Hatoum, que compõem a edição brasileira publicada pela editora Tabla, em 2024, este livro é a melhor porta de entrada para quem deseja se aproximar da questão palestina. Primeiro, porque oferece um mergulho na realidade cotidiana dos palestinos, destacando a perspectiva subjetiva e poética de Darwich. Não se trata apenas de um relato de fatos — trata-se de um convite à reflexão sobre o que esses fatos significam para aqueles que os vivem.
Em segundo lugar, porque o livro demonstra com clareza a anterioridade do martírio palestino — uma história que não começou em outubro de 2023, como muitos ainda acreditam. Para quem só recentemente ouviu falar da Palestina, este livro é uma chave fundamental de compreensão da profundidade da questão.
Em terceiro lugar, Darwich aborda momentos cruciais da história palestina — da Nakba, em 1948, aos desdobramentos trágicos da Naksa, em 1967. Compreender esses eventos é indispensável para entender a estrutura da ocupação e seus efeitos profundos sobre a sociedade palestina.
Em quarto lugar, o autor realiza uma investigação crítica da mentalidade e da cultura israelense — e não o faz por meio de caricaturas, mas revelando como uma sociedade inteira pode ser moldada por um projeto colonial. O sionismo, como ele mostra, não se reduz a decisões políticas ou governos de ocasião: é uma lógica de dominação enraizada na cultura, na educação, na mídia, na memória coletiva e, claro, nas práticas militares cotidianas.
Em quinto lugar — e atrelado a isso —, este livro desmonta de maneira contundente a “teoria dos dois lados”, que insiste em forjar uma falsa simetria entre colonizador e colonizado, entre ocupante e ocupado. Essa visão, ainda dominante mesmo entre setores progressistas no Brasil, é desafiada por Darwich com firmeza e lucidez, reafirmando o caráter estruturalmente colonial da ocupação sionista. Isso nos obriga, no mínimo, a repensar profundamente nossas leituras sobre a resistência palestina.
E, por fim, este livro é imprescindível na Biblioteca Palestina porque registra as experiências, as ideias e a sensibilidade de um dos maiores escritores de todos os tempos — um patrimônio cultural do povo palestino, que deve ser celebrado, preservado e lido com atenção.
Por tudo isso, Diário da tristeza comum é uma excelente indicação para quem deseja iniciar uma jornada em direção à Palestina. Tenho certeza de que essa leitura promoverá um encontro poderoso, necessário e inesquecível.
Rafael Domingos Oliveira
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