A afirmação do presidente Bolsonaro carrega o preconceito de que os índios ainda não são seres humanos como nós e que somente abraçando nossa modernidade, nossa fúria de destruidores e consumistas compulsivos, serão humanos completos em nossas cidades de cimento.
É paradoxal que o presidente brasileiro afirme que os índios estão começando a se humanizar quando todos os antropólogos e filósofos dizem que a crise do Homo sapiens consiste em que somos nós, e não os indígenas, que estamos esquecendo de onde viemos. Isso por termos abandonado nossas raízes naturais, as que nos conectam com a natureza, para nos tornarmos robôs e feixes de fios elétricos.
É possível que a infeliz declaração de Bolsonaro tenha sido um daqueles lapsos de linguagem estudados pela psicanálise de Freud e Lacan, que refletiria o conceito que o presidente tem do humano em seu subconsciente. Talvez isso reflita, antes, que ele não consegue ver os indígenas como humanos completos. Eles o serão, em sua opinião, na medida em que forem se contaminando com a nossa “incivilização” de destruidores da natureza que seria o nosso verdadeiro habitat, onde o ser humano se reconhece. Até Deus, ao criar a terra, exclamou que “era boa”. E dessa terra criou o homem e a mulher. Nós a estamos maltratando.
A Terra é nosso berço, nossa seiva, da qual se nutre não apenas nosso corpo, que é feito, como dizem os astrônomos, do “mesmo pó das estrelas”, mas também nosso pensamento e nossos desejos mais profundos e originais.
Somos feitos das mesmas moléculas do barro da terra, das águas dos rios e do oxigênio das florestas. Só conseguiremos ser humanos completos na medida em que não percamos nossas raízes com a mãe Terra, que foi a primeira deusa criada pelo homem.
Pelo contrário, são os povos indígenas que, com suas culturas ancestrais, com seus ricos deuses da floresta, com seus pensamentos amalgamados pelo sol, ainda conseguem manter a conexão com o cosmos, com a vida e seus mistérios mais ocultos. Somos nós que, depois de termos nos desconectado da natureza para nos conectarmos à fria tecnologia que não tem aroma nem cor, estamos nos afastando da nossa verdadeira humanidade para nos tornarmos alienígenas que acabarão sem saber o que é um tomate ou um cacho de uvas. Também já não somos capazes de distinguir, por exemplo, em uma floresta, mais de dois ou três tons de verde. Os indígenas conseguem detectar até sessenta.
A pena é que não é fácil se alimentar de conexões elétricas ou se regozijar com frios robôs sem alma e sem vida. Até uma pedra contém mais vida e conserva melhor as batidas do cosmos do que um computador. São essas batidas que chegam da eternidade do mundo que realmente nos fazem humanos.
Seremos mais humanos não na medida em que nos pareçamos menos com os indígenas que continuam sendo os guardiões da terra, mas em que, como eles, não nos desconectemos daquilo que são nossas verdadeiras raízes, que não são as da tecnologia. Ela é apenas um instrumento que facilita nossa vida e ajuda a nos conectarmos melhor uns com os outros, mas nunca será um substituto que nos torne mais humanos, mais espirituais, mais com gosto de terra.
Por que as crianças gostam tanto de brincar e se sujar de barro? Ou tomar banho nuas nos rios? Ou subir em uma árvore para saborear uma fruta madura? Uma mulher indígena me ensinou uma vez na Itália que os figos mais doces são os que foram bicados pelos pássaros porque eles só comem os mais maduros.
Não, não são os índios que estão se humanizando porque começam a se parecer mais com o homem moderno, a amar a fria tecnologia e a se separar da natureza. Como escreveu em sua coluna em O Gobo o agudo analista Arnaldo Bloch, não são os índios que estão começando a se humanizar, mas é o presidente Bolsonaro que “cada vez menos é um ser humano igual a nós”. Pelo menos assim parece àqueles que acreditam que ainda temos muito a aprender com os que chamamos de índios e que certamente entendem melhor do que tantos outros o que significa ser verdadeiramente humanos.
Eles estão unidos à natureza desde sempre e são capazes de ainda sentir os primeiros gemidos da criação do mundo. Nós parecemos estrangeiros em uma Terra que estamos destruindo com cada vez mais afinco e crueldade. Ainda é possível ter uma fresta de esperança? Ela só nos virá do ventre dessa Terra cada vez mais maltratada e mais necessária. Aquela que nos devolve o sabor áspero e forte do barro de onde viemos.
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