Esta afirmação é do sociólogo Jessé Souza, novo presidente do IPEA, feita à repórter Nice de Paula que o entrevistou e publicou a matéria por sina excelente, na edição de O Globo de 27, segunda-feira. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada é vinculado ao Ministério do Planejamento. Jessé de Souza pode não permanecer durante muito tempo no cargo, pois sua tese – O Brasil faz de conta que conhece a si mesmo – colide frontalmente com a mensagem do governo Dilma Rousseff, que aponta, nos últimos doze anos, a partir de Lula, um deslocamento de frações das classes pobres para uma nova classe média. Jessé de Souza coloca-se numa rota de colisão. Acho que está certo.
Para ele, 70% da população do país não são de classe média. São pobres, portanto, deixa claro. Pois como o Brasil pode figurar entre as nações formadas em maioria pelas classes médias, se, de acordo com o próprio IBGE, 50% dos trabalhadores ganham até 3 salários mínimos por mês. E 70% não ultrapassam a barreira de cinco salários mínimos?
Como ser uma nação de classe média um país cujos assalariados recebem por ano, no total, 2 trilhões de reais e cujas dívidas atingem 1 trilhão e 400 bilhões? O endividamento alcança portanto, a escala de 70% de seus vencimentos. As favelas e os cortiços proliferam, quase 40% dos domicílios não contam com sistemas adequados de saneamento. Esgotos correm a céu aberto. Jessé de Souza anunciou à repórter Nice de Paula um projeto ambicioso de conhecimento interpretativo, uma espécie, vamos assim dizer, de radiografia dos números do IBGE. A controvérsia vai partir daí. Sua tarefa e sua caminhada não serão nada fáceis. Afinal, revelar a verdade sempre incomoda os governos. O novo presidente do IPEA quer colocar a verdade em torno do manto da fantasia. Ele definiu seu projeto de pesquisa.
Trata-se de um estudo importante e inédito porque vai unir, disse ele, três perspectivas: interpretação dos dados estatísticos; uma dimensão compreensiva e a visão das pessoas a respeito do país e do universo. Neste plano, será necessária, além da interpretação, uma tradução iluminando e expondo melhor, e mais amplamente, as vontades coletivas, suas esperanças, portanto suas decepções e desilusões, acrescento eu. Não se trata de um supercenso. Mas de uma análise do próprio senso à luz de uma inteligência lógica e objetiva. Enfim, em síntese, tudo aquilo que os governos não desejam.
Não desejam porque o reconhecimento público de vulnerabilidade destrói os mitos, como o da despoluição da Baia da Guanabara, exibido domingo pelo Fantástico, quando promessas se transferiram e acumularam de um governo do Rio de janeiro para outro, numa sequência ridícula de inações. Mas esta é outra questão. O essencial, me parece, sob a lente de Jessé de Souza, é o descortinar de um panorama evidente para poucos, porém, embora sentido diretamente por muitos, ignorado conscientemente por estes, vítimas diretas de uma situação de descalabro, como se verifica no setor da saúde, que atravessa o tempo e até o compromisso humano dos dirigentes para com aqueles que mais necessitam.
Os que mais necessitam, assim, não podem ser considerados de classe média. Este mito, portanto, necessita ser destruído, porque enquanto não houver uma compreensão exata do país, por ele mesmo, esse caminho de evolução jamais será percorrido. Essa é, a meu ver, a proposta básica do novo presidente do IPEA. Que seja efetivo enquanto dure, ou pelo menos mantido por quem o suceder. Os governos não gostam muito da verdade.