quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Aquecimento global e descaso impulsionando dengue no Brasil

Resistindo às dores no quadril e nas visões pelo corpo, o aposentado Aramis de Lima, de 62 anos, assistiu com ruptura a um batalhão de funcionários de limpeza pública retirando cerca de duas toneladas de lixo e entulho do terreno vizinho a sua casa. Ele acredita que, se fossem feitas duas semanas antes, já no meio da rápida expansão da dengue , teria escapado de sua primeira contaminação pela doença.

“Aqui na rua, 90% dos moradores pegaram, certamente por causa desse lixo que estava acumulado”, acredita. "Minhas redes tiveram sintomas que provavelmente foram de dengue, mas eu tenho histórico de amputação, dores em decorrência disso, aí unidos com a doença e superados em dores muito fortes, espasmos musculares. Foi complicado", conta. Como sequela temporária, comum para a doença, ocorrem as situações pelo corpo.

Pelas ruas da Vila Jaguara, na zona oeste de São Paulo, não faltam áreas e terrenos que sejam alvos da indignação de Lima e seus vizinhos. Numa área de pouco mais de dois quilômetros quadrados, as equipes de saúde mapearam ao menos seis ferro-velhos e focos de acúmulo de lixo e entulho perfeitos para a procriação do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, do zika vírus E da chikungunya .

Paralelamente, 7.369 imóveis receberam instruções com inseticida ou assistência social para evitar os focos do mosquito entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano.


Os esforços, porém, não tiveram sucesso e não impediram a Vila Jaguara de deter o título de epicentro da dengue no município de São Paulo. Por lá, a taxa de contaminação é 28 vezes maior que a média paulistana. No Brasil, perde apenas para o Distrito Federal, onde cerca de 2,5% da população contraiu o vírus da dengue nos últimos meses.

Em condições normais de temperatura e chuva, o ciclo de vida do Aedes aegypti, da colocação dos ovos até a formação do mosquito, é de sete a dez dias, explica o coordenador de vigilância em saúde da capital paulista, Luiz Artur Caldeira.

“Se a condição for, por exemplo, de muito calor intenso, esse período pode baixar para até quatro dias, dobrando assim o número de mosquitos em relação ao ciclo normal”, alerta. "Isso é algo que ocorre em boa parte do país desde pelo menos setembro do ano passado, muito por conta do El Niño ", afirma, referindo-se às características caracterizadas pelo aquecimento anormal e persistente da superfície do Oceano Pacífico na região da Linha do Equador.

Especialistas vem alertando que as previsões climáticas extremos de 2023 são fruto direto do aquecimento global provocado pela ação humana. No entendimento do epidemiologista e professor da USP Paulo Lotufo, o que a atual epidemia de dengue ilustra é a extensão dos impactos que as mudanças climáticas geram sobre as populações humanas.

"Quanto maior para o aquecimento do planeta, mais o mosquito vai conseguir se reproduzir. Tanto é assim que ele já está chegando a lugares onde há muito tempo não estava, como Estados Unidos e Argentina. Até bem pouco tempo seria inimaginável fazer fumigação às margens do rio Sena, em Paris, para eliminação do Aedes ”, explica.

Com o calor dos últimos meses, os brasileiros vêm sofrendo na própria saúde essa explosão da armadilha dos mosquitos. Em todo o país, o número de casos confirmados ou sob suspeita de dengue já passa de 653 mil — ou um infectado a cada 347 mil brasileiros. No mesmo período de 2023, o número de casos não chegou a 130 mil. Trata-se de um aumento de 294% de um ano para o outro, e que já provocou 113 mortes, enquanto 438 estão sendo investigadas.

Pelos dados do Ministério da Saúde, o avanço da dengue nunca foi tão rápido no Brasil, e o país pode chegar a 4,2 milhões de casos até o fim do ano.

“A taxa de letalidade da população varia de 3 a 7 por mil, ou seja, 0,3% a 0,7%. Quando eu falo que a taxa de letalidade da dengue é de cerca de 1%, o pessoal fala 'puxa, é pouco', mas não é! É o dobro do que é esperado sem a doença", ressalta Lotufo.

De todas as unidades da federação, o Distrito Federal apresenta o cenário mais complicado. Até 10 de fevereiro, dados do último boletim epidemiológico, foram registrados 23 óbitos pela doença em meio ao surto, que do ano passado para este explodiu em mais de 1.000%, atingindo quase todas as regiões com gravidade. Na capital do país, quase metade das mortes por dengue é de pessoas com mais de 60 anos.

Apesar da estimativa de que 70% da população da Vila Jaguara, em São Paulo, esteja nesse grupo, nenhuma morte foi registrada por dengue neste ano no bairro. O que não impede, entretanto, que os moradores mais velhos tenham a doença.

"Moro há 60 anos aqui e nunca vi nada parecido. Até mesmo minha filha e meus netos deixaram de me visitar nas últimas semanas por medo desse surto provocado pelo lixo espalhado. Esperamos que agora melhore, mas o repelente está sempre na mão, não desgrudamos dele", conta a aposentada Nanci Albanez, que diz aguardar ansiosamente pela vacina, que não tem prazo para chegar à maior cidade do país.

Por conta de limitações na produção da farmacêutica japonesa Takeda Pharma, o Ministério da Saúde comprou para este ano o suficiente para imunizar 2,5 milhões de pessoas com a vacina Qdenga . Por conta disso, apenas 10% de todos os municípios do país serão contemplados este ano, 11 deles em São Paulo, onde a vacinação começa nesta terça-feira, com crianças entre 10 e 11 anos na região do Alto Tietê .

A partir de 2025, entrará em campo ainda uma vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan, que ao contrário da japonesa, exige aplicação única. O epidemiologista Paulo Lotufo, porém, enfatiza que a vacina é um auxiliar e que, agora e no futuro, o fundamental é reduzir o contato da população com o mosquito.

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