sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
2022: o primeiro ano do resto de nossas vidas
O clima que cerca a chegada de 2022 é de ansiedade. Viradas de ano costumavam, antes da pandemia e de Bolsonaro, ser épocas cercadas de renovação de esperanças, um relaxamento de quem quer deixar tudo de ruim no ano que se encerra e começar o novo com tudo zerado.
Mas não é assim desta vez. 2021 foi, no Brasil e no mundo, a parte 2 de 2020, repetindo confinamento, mortes, incerteza quanto à recuperação da economia, agravamento das desigualdades e a confirmação de que vivemos uma emergência climática cada vez mais presente no dia a dia. De novo vimos ameaçados consensos civilizatórios, como direitos individuais e coletivos e a adesão às leis, à democracia e à razão.
E se 2022 vier para constituir uma trilogia macabra que conspurcará para sempre a terceira década do século 21? Há componentes que fogem ao nosso controle para definir se esse cenário distópico vai se concretizar, mas na última coluna do ano prefiro ficar no que está ao alcance de nós, brasileiros, para que vivamos o primeiro ano do resto de nossas, vidas, e não o terceiro do caos.
É preciso que exijamos dos governantes atitudes racionais, baseadas em dados e evidências, que contribuam para o bem da maior parcela da sociedade, e não de grupos de pressão ou de afinidade ideológica.
É necessário que a democracia seja um valor inegociável para qualquer brasileiro, independentemente de sua crença político-ideloógica, porque, à medida que ela continue a ser enfraquecida, como vem sendo de forma sistemática e deliberada pelo presidente e seus apoiadores, nenhum governo, seja de direita, de esquerda ou de centro, terá tranquilidade e segurança jurídica e institucional para administrar o país.
Por defesa incondicional da democracia se compreende o respeito ao resultado das eleições que ocorrerão em outubro, vença quem vencer. A compreensão madura de que ciclos políticos vêm e vão porque contêm em si os elementos de confirmação ou de repulsa ao que produzem, e isso é o cerne e a maior beleza dos regimes democráticos.
Para que esse entendimento seja genuíno, e não um discurso que varia a depender das pesquisas de popularidade de governos e políticos, é necessário que haja um comprometimento com a independência dos Poderes e do Ministério Público e com a existência de uma imprensa que não serve para legitimar esta ou aquela narrativa, mas para cobrar duramente quem está no poder.
A superação do ciclo que se agravou em 20 e 22, mas que começou bem antes a nos condenar a crises sucessivas, concomitantes e sistêmicas depende de que vencedores e vencidos de ontem e hoje deixem de infantilmente exigir capitulação daqueles que enxergam como inimigos e passem a construir um futuro de superação do flagelo que atualmente se abate sobre o Brasil.
Não está escrito em nenhum livro místico que países serão capazes de sobreviver por mais que governos sejam ineptos, neguem a Ciência, ajam contra a vida e os mais desassistidos, defendam o arbítrio e o uso da violência como forma de persuasão coletiva ou dizimem as bases do amanhã em busca de confirmação de viés ideológico ou de benesses a grupos cujos interesses são obscuros e contrários ao bem comum.
É essa a realidade do Brasil hoje, a síntese do que é o bolsonarismo enquanto governo. Esses vetores independem de o governo ser de direita, ou conservador, ou como se queira chamar. Eles derivam de uma profunda incapacidade do atual mandatário para a missão de governar um país. Para que 2022 devolva o Brasil aos trilhos é preciso mudar este rumo. A forma com que isso será feito caberá à maioria decidir. É hora de construir essa saída.
Mas não é assim desta vez. 2021 foi, no Brasil e no mundo, a parte 2 de 2020, repetindo confinamento, mortes, incerteza quanto à recuperação da economia, agravamento das desigualdades e a confirmação de que vivemos uma emergência climática cada vez mais presente no dia a dia. De novo vimos ameaçados consensos civilizatórios, como direitos individuais e coletivos e a adesão às leis, à democracia e à razão.
E se 2022 vier para constituir uma trilogia macabra que conspurcará para sempre a terceira década do século 21? Há componentes que fogem ao nosso controle para definir se esse cenário distópico vai se concretizar, mas na última coluna do ano prefiro ficar no que está ao alcance de nós, brasileiros, para que vivamos o primeiro ano do resto de nossas, vidas, e não o terceiro do caos.
É preciso que exijamos dos governantes atitudes racionais, baseadas em dados e evidências, que contribuam para o bem da maior parcela da sociedade, e não de grupos de pressão ou de afinidade ideológica.
É necessário que a democracia seja um valor inegociável para qualquer brasileiro, independentemente de sua crença político-ideloógica, porque, à medida que ela continue a ser enfraquecida, como vem sendo de forma sistemática e deliberada pelo presidente e seus apoiadores, nenhum governo, seja de direita, de esquerda ou de centro, terá tranquilidade e segurança jurídica e institucional para administrar o país.
Por defesa incondicional da democracia se compreende o respeito ao resultado das eleições que ocorrerão em outubro, vença quem vencer. A compreensão madura de que ciclos políticos vêm e vão porque contêm em si os elementos de confirmação ou de repulsa ao que produzem, e isso é o cerne e a maior beleza dos regimes democráticos.
Para que esse entendimento seja genuíno, e não um discurso que varia a depender das pesquisas de popularidade de governos e políticos, é necessário que haja um comprometimento com a independência dos Poderes e do Ministério Público e com a existência de uma imprensa que não serve para legitimar esta ou aquela narrativa, mas para cobrar duramente quem está no poder.
A superação do ciclo que se agravou em 20 e 22, mas que começou bem antes a nos condenar a crises sucessivas, concomitantes e sistêmicas depende de que vencedores e vencidos de ontem e hoje deixem de infantilmente exigir capitulação daqueles que enxergam como inimigos e passem a construir um futuro de superação do flagelo que atualmente se abate sobre o Brasil.
Não está escrito em nenhum livro místico que países serão capazes de sobreviver por mais que governos sejam ineptos, neguem a Ciência, ajam contra a vida e os mais desassistidos, defendam o arbítrio e o uso da violência como forma de persuasão coletiva ou dizimem as bases do amanhã em busca de confirmação de viés ideológico ou de benesses a grupos cujos interesses são obscuros e contrários ao bem comum.
É essa a realidade do Brasil hoje, a síntese do que é o bolsonarismo enquanto governo. Esses vetores independem de o governo ser de direita, ou conservador, ou como se queira chamar. Eles derivam de uma profunda incapacidade do atual mandatário para a missão de governar um país. Para que 2022 devolva o Brasil aos trilhos é preciso mudar este rumo. A forma com que isso será feito caberá à maioria decidir. É hora de construir essa saída.
Bolsonaro de uniforme listrado
Dentro de algumas horas, a televisão começará a nos bombardear com a manchete: "Já é 2022 na Austrália!". E tome de fogos naquela ponte. A Austrália está 12 horas à nossa frente, donde tudo lá acontece primeiro, e não apenas arremesso de bumerangue e corrida de canguru. A tal ponto que, quando uma coisa está para acontecer aqui, dizemos que na Austrália ela já aconteceu.
Há gente prevendo, por exemplo, que Jair Bolsonaro será preso em 2022. Pois, quando acontecer, ele já terá sido preso na Austrália 12 horas antes.
Eu sei, isso é nonsense, mas não impede que tal pensamento nos ajude a virar o ano. A ideia de Bolsonaro atrás das grades, de uniforme listrado, rosnando para as paredes e com um buraco na cela como privada é deliciosa demais para ser posta de lado. Parodiando Nelson Rodrigues, o ideal seria amarrá-lo a um pé de mesa e dar-lhe de beber numa cuia de queijo Palmyra. E, tendo para se distrair, só os programas da Jovem Pan e do SBT. Seu advogado particular, o ex-procurador-geral da República Augusto Aras, tentaria livrá-lo —mas sem se esforçar muito, porque, caroneado para o STF, Aras no fundo quer que Bolsonaro se dane.
Um amigo me pergunta se a prisão será suficiente. E desfia a obsessão de Bolsonaro pela morte —a morte alheia. Bolsonaro defendeu a tortura, pregou a execução de adversários políticos e está armando policiais e civis para uma guerra civil. Na pandemia, ficou com o vírus e contra a ciência, nunca visitou um hospital, debochou dos agonizantes e chamou de mimimi a dor das famílias enlutadas. Outro dia, disse que a morte de uma criança não justifica uma emergência. E, neste momento, é um pândego em férias enquanto milhares de brasileiros estão morrendo ou perdendo tudo com a chuva.
Para esse meu amigo, Bolsonaro, pelo que já fez e ainda fará, merecia a pena de morte. Discordei, claro. A guilhotina, a forca e a cadeira elétrica punem rápido demais.
Há gente prevendo, por exemplo, que Jair Bolsonaro será preso em 2022. Pois, quando acontecer, ele já terá sido preso na Austrália 12 horas antes.
Eu sei, isso é nonsense, mas não impede que tal pensamento nos ajude a virar o ano. A ideia de Bolsonaro atrás das grades, de uniforme listrado, rosnando para as paredes e com um buraco na cela como privada é deliciosa demais para ser posta de lado. Parodiando Nelson Rodrigues, o ideal seria amarrá-lo a um pé de mesa e dar-lhe de beber numa cuia de queijo Palmyra. E, tendo para se distrair, só os programas da Jovem Pan e do SBT. Seu advogado particular, o ex-procurador-geral da República Augusto Aras, tentaria livrá-lo —mas sem se esforçar muito, porque, caroneado para o STF, Aras no fundo quer que Bolsonaro se dane.
Um amigo me pergunta se a prisão será suficiente. E desfia a obsessão de Bolsonaro pela morte —a morte alheia. Bolsonaro defendeu a tortura, pregou a execução de adversários políticos e está armando policiais e civis para uma guerra civil. Na pandemia, ficou com o vírus e contra a ciência, nunca visitou um hospital, debochou dos agonizantes e chamou de mimimi a dor das famílias enlutadas. Outro dia, disse que a morte de uma criança não justifica uma emergência. E, neste momento, é um pândego em férias enquanto milhares de brasileiros estão morrendo ou perdendo tudo com a chuva.
Para esse meu amigo, Bolsonaro, pelo que já fez e ainda fará, merecia a pena de morte. Discordei, claro. A guilhotina, a forca e a cadeira elétrica punem rápido demais.
Retrospectiva 2021
Janeiro: fui da sala para a cozinha e vice-versa 14 vezes por dia. Sendo assim, podemos calcular 435 idas e vindas no mês. Houve numa tarde quente uma chuva de tanajuras no quintal. Como em janeiro de 1972, num começo de dia três carroças passaram sem pressa em frente de casa. Fui acordado com o estalido das ferraduras no asfalto, e demorei para lembrar onde e quando estava. Parecia que, a qualquer momento, minha mãe abriria a porta do quarto naquele jeito apressado dela. Um carro passou tocando funk e acabou com o delírio bom: eu estava em janeiro de 2021, e mesmo isso não ia durar muito.
Em fevereiro, descobri que meus óculos já não estavam dando conta. Houve uma bela safra de insetos, racionamento de água e nuvens. Derramei cinco vezes açúcar na mesa, o suficiente para abastecer o açucareiro – pelos meses restantes, adocei o ano da toalha. Era um presságio de doçura para a chegada de Bruno, dias depois.
No começo de março, a quina da cama me roubou uma unha. Descasquei algumas bananas, passei manteiga no pão. Mais para o fim do mês, antes de voltar à capital, um pulo no litoral. Revi o mar, sempre bom rever o mar: molhei os pés, salguei o corpo, apanhei das ondas, me deitei na areia e, por alguns minutos, esqueci a pandemia.
Em abril, veio a vingança: a perda de um grande amigo para a covid. E mês mais não houve.
Em maio, ainda o choro e zero de conformidade. Escovei os dentes, fiz (pouco) a barba, temperei a salada, passei café toda tarde, liguei para alguns amigos, tentativas de fazer a vida seguir normal. E uma notificação de multa por furar o rodízio. O vento de maio derrubou as folhas do plátano.
Em junho, fiz uma caipirinha de morango que fez subir meu conceito em casa. Na primeira saída à rua que não fosse para ir à farmácia ou ao supermercado, um cachorro fez festinha e me seguiu por oito quarteirões. Uma alegria: chegaram em casa os contos completos do Cortázar. Motivo para não achar o confinamento tão ruim assim.
Julho trouxe frio e uma dor de dente suportável, que, misteriosamente, foi como veio. O limoeiro carregou. Houve uma gigantesca teia de aranha no jardim sustentando uma aranha com muitas pernas e pouca simpatia. Fui instado pela família a sumir com aquele bicho dali. Quando criei coragem, dei com uma teia rasgada e nada de aranha – um pássaro, um gato ou uma tempestade de granizo haviam feito o serviço por mim. Posso jurar que, ao menos neste ano, sou inocente. Não se pode dizer o mesmo das estrelas, que andaram muito cintilantes e exibidas.
Em agosto, eu e Beatriz fomos vacinados. Viva o SUS, viva a vida e esse sol. Ao contrário do meu amigo, consegui escapar da incompetência e descaso desse governo criminoso. Obrigado, mas não a vocês.
Setembro chegou com meu novo livro e trouxe de volta a chuva, recebida com festa, pitanga e jabuticaba. Perdi três quilos, disse a balança. Alguns balões imensos, coloridos, apareceram no céu para distrair a vida. Os noticiários se esforçaram ao máximo em trazer más notícias. Muitos gatos visitantes no quintal, no telhado, até um todo branco refestelado na minha rede. O jeito foi trabalhar sentado à mesa, como as pessoas normais costumam fazer.
Em outubro, os 60 chegaram, trazendo algum susto e incredulidade. Recebi abraços à distância, que me deixaram feliz. As folhas renasceram no plátano. Mandei a diabetes às favas e chupei um sorvete de casquinha. De vez em quando, um choro ao lembrar do amigo. Andei 10 km por dia, não em ritmo de atleta, porque atleta não sou e é preciso prestar atenção. Maria cortou meu cabelo e ficou meio engraçado.
Novembro ressuscitou as maritacas, que resolveram pôr em dia, aos gritos, as conversas adiadas. A goteira surgiu. O flamboyant floriu. O carro quebrou. A luz faltou. O remédio sumiu. Beatriz sorriu. Estou no lucro.
Veio dezembro e suas impetuosidades: esse calor, chuva de pingo grosso, luz que não deixa abrir o olho. Pedro pegou gripe, Maria dançou o Quebra-Nozes. O mês ainda não acabou. O ano ainda não acabou. Então, como fazer uma retrospectiva, se algo ou alguém pode aprontar alguma nos dias que faltam?
No mais, foi outro ano sem cometa. Também senti falta de uma viagem de trem, um futebolzinho na chuva, uma dança epilética, um beijo roubado – não vieram, muito pelo motivo já citado em outubro.
O principal: sobrevivemos. Estamos aqui. Isso merece um “Al di la” cantado com sentimento e um belo gole de cerveja. A você, meu amigo Alexandre Bonani.
Cássio Zanatta
Em fevereiro, descobri que meus óculos já não estavam dando conta. Houve uma bela safra de insetos, racionamento de água e nuvens. Derramei cinco vezes açúcar na mesa, o suficiente para abastecer o açucareiro – pelos meses restantes, adocei o ano da toalha. Era um presságio de doçura para a chegada de Bruno, dias depois.
No começo de março, a quina da cama me roubou uma unha. Descasquei algumas bananas, passei manteiga no pão. Mais para o fim do mês, antes de voltar à capital, um pulo no litoral. Revi o mar, sempre bom rever o mar: molhei os pés, salguei o corpo, apanhei das ondas, me deitei na areia e, por alguns minutos, esqueci a pandemia.
Em abril, veio a vingança: a perda de um grande amigo para a covid. E mês mais não houve.
Em maio, ainda o choro e zero de conformidade. Escovei os dentes, fiz (pouco) a barba, temperei a salada, passei café toda tarde, liguei para alguns amigos, tentativas de fazer a vida seguir normal. E uma notificação de multa por furar o rodízio. O vento de maio derrubou as folhas do plátano.
Em junho, fiz uma caipirinha de morango que fez subir meu conceito em casa. Na primeira saída à rua que não fosse para ir à farmácia ou ao supermercado, um cachorro fez festinha e me seguiu por oito quarteirões. Uma alegria: chegaram em casa os contos completos do Cortázar. Motivo para não achar o confinamento tão ruim assim.
Julho trouxe frio e uma dor de dente suportável, que, misteriosamente, foi como veio. O limoeiro carregou. Houve uma gigantesca teia de aranha no jardim sustentando uma aranha com muitas pernas e pouca simpatia. Fui instado pela família a sumir com aquele bicho dali. Quando criei coragem, dei com uma teia rasgada e nada de aranha – um pássaro, um gato ou uma tempestade de granizo haviam feito o serviço por mim. Posso jurar que, ao menos neste ano, sou inocente. Não se pode dizer o mesmo das estrelas, que andaram muito cintilantes e exibidas.
Em agosto, eu e Beatriz fomos vacinados. Viva o SUS, viva a vida e esse sol. Ao contrário do meu amigo, consegui escapar da incompetência e descaso desse governo criminoso. Obrigado, mas não a vocês.
Setembro chegou com meu novo livro e trouxe de volta a chuva, recebida com festa, pitanga e jabuticaba. Perdi três quilos, disse a balança. Alguns balões imensos, coloridos, apareceram no céu para distrair a vida. Os noticiários se esforçaram ao máximo em trazer más notícias. Muitos gatos visitantes no quintal, no telhado, até um todo branco refestelado na minha rede. O jeito foi trabalhar sentado à mesa, como as pessoas normais costumam fazer.
Em outubro, os 60 chegaram, trazendo algum susto e incredulidade. Recebi abraços à distância, que me deixaram feliz. As folhas renasceram no plátano. Mandei a diabetes às favas e chupei um sorvete de casquinha. De vez em quando, um choro ao lembrar do amigo. Andei 10 km por dia, não em ritmo de atleta, porque atleta não sou e é preciso prestar atenção. Maria cortou meu cabelo e ficou meio engraçado.
Novembro ressuscitou as maritacas, que resolveram pôr em dia, aos gritos, as conversas adiadas. A goteira surgiu. O flamboyant floriu. O carro quebrou. A luz faltou. O remédio sumiu. Beatriz sorriu. Estou no lucro.
Veio dezembro e suas impetuosidades: esse calor, chuva de pingo grosso, luz que não deixa abrir o olho. Pedro pegou gripe, Maria dançou o Quebra-Nozes. O mês ainda não acabou. O ano ainda não acabou. Então, como fazer uma retrospectiva, se algo ou alguém pode aprontar alguma nos dias que faltam?
No mais, foi outro ano sem cometa. Também senti falta de uma viagem de trem, um futebolzinho na chuva, uma dança epilética, um beijo roubado – não vieram, muito pelo motivo já citado em outubro.
O principal: sobrevivemos. Estamos aqui. Isso merece um “Al di la” cantado com sentimento e um belo gole de cerveja. A você, meu amigo Alexandre Bonani.
Cássio Zanatta
O ano em que o mito miou
A última reflexão do ano é: já vai tarde. Certamente um dos piores, senão o pior, ano de nossas vidas. Para o vovô e o netinho, atravessando gerações que suportaram presidentes bêbados, tirânicos, incompetentes, ladrões ou doentes mentais, e crises econômicas e políticas quase permanentes. Brava gente brasileira.
Mas não adianta chorar pelo ódio derramado. O ano que vem pode ser pior, bem pior, se muita coisa não mudar. Para melhor. Dentro e fora de nós. Não é possível que uma minoria de 20% de fanáticos mande no destino de 210 milhões de brasileiros usando a mentira como método e os truques mais sujos para minar e destruir a democracia.
Ao estuprar o orçamento para dar aumento para os policiais, Bolsonaro ganhou 45 mil votos. E perdeu 1 milhão, dos funcionários públicos federais que o odiaram porque não tiveram o mesmo benefício. Brilhante jogada de marketing político... de seus adversários.
O pior é que esses 45 mil eleitores agradecidos estão armados pelo Estado e são pagos com os impostos da população — para defendê-la. Mas talvez ele esteja pensando em juntar forças fiéis para uma insurreição armada que o livre, e aos seus filhos, da cadeia...
Mas, apesar de tudo, estou esperançoso, não por acaso tenho uma filha chamada Esperança. Só que nem ela aguentou o Brasil e foi morar em Madri. Minha esperança brasileira é que o maior inimigo de Bolsonaro é ele mesmo, especialista em tiros nos pés, nos quatro, em criar inimigos, em mentiras e bravatas absurdas que o obrigam a voltar atrás com o rabo entre as pernas, como quando o mito miou fino depois de seu surto golpista de sete de setembro e teve que pedir ajuda a Temer para uma retratação humilhante. “No calor do momento” ele pode querer fechar o Congresso ou o Supremo. Mas aí não haverá carta que o salve do impeachment.
Paladino do combate à corrupção, está como pinto no lixo no partido de um ex-presidiário e nas mãos de uma tropa, matilha, quadrilha, que apoia qualquer governo, desde que sacie sua fome insaciável por cargos e verbas públicas, mas não acompanham nenhum governo ao túmulo. Bolsonaro desistiu de falar para 80% da população que ainda têm alguma racionalidade além de suas necessidades urgentes de sobrevivência. Que Deus tenha piedade de sua alma. Mas muito mais das nossas.
é elogio, prêmio, condecoração,
ou como um cão latindo ao longe.
Mas também há elogios,
que, conforme de onde vêm,
ofendem e comprometem,
nenhuma importância têm.
Então qual o prazer, a onda, a emoção,
de ser xingado e aplaudido,
em público, por desconhecidos,
qual o motivo, a razão, o sentido,
de tanto tempo perdido ?
E, no entanto, disputam uma curtida
como quem vai num prato de comida.
Mas não adianta chorar pelo ódio derramado. O ano que vem pode ser pior, bem pior, se muita coisa não mudar. Para melhor. Dentro e fora de nós. Não é possível que uma minoria de 20% de fanáticos mande no destino de 210 milhões de brasileiros usando a mentira como método e os truques mais sujos para minar e destruir a democracia.
Ao estuprar o orçamento para dar aumento para os policiais, Bolsonaro ganhou 45 mil votos. E perdeu 1 milhão, dos funcionários públicos federais que o odiaram porque não tiveram o mesmo benefício. Brilhante jogada de marketing político... de seus adversários.
O pior é que esses 45 mil eleitores agradecidos estão armados pelo Estado e são pagos com os impostos da população — para defendê-la. Mas talvez ele esteja pensando em juntar forças fiéis para uma insurreição armada que o livre, e aos seus filhos, da cadeia...
Mas, apesar de tudo, estou esperançoso, não por acaso tenho uma filha chamada Esperança. Só que nem ela aguentou o Brasil e foi morar em Madri. Minha esperança brasileira é que o maior inimigo de Bolsonaro é ele mesmo, especialista em tiros nos pés, nos quatro, em criar inimigos, em mentiras e bravatas absurdas que o obrigam a voltar atrás com o rabo entre as pernas, como quando o mito miou fino depois de seu surto golpista de sete de setembro e teve que pedir ajuda a Temer para uma retratação humilhante. “No calor do momento” ele pode querer fechar o Congresso ou o Supremo. Mas aí não haverá carta que o salve do impeachment.
Paladino do combate à corrupção, está como pinto no lixo no partido de um ex-presidiário e nas mãos de uma tropa, matilha, quadrilha, que apoia qualquer governo, desde que sacie sua fome insaciável por cargos e verbas públicas, mas não acompanham nenhum governo ao túmulo. Bolsonaro desistiu de falar para 80% da população que ainda têm alguma racionalidade além de suas necessidades urgentes de sobrevivência. Que Deus tenha piedade de sua alma. Mas muito mais das nossas.
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Tempo perdido
Ser ofendido, dependendo por quem,é elogio, prêmio, condecoração,
ou como um cão latindo ao longe.
Mas também há elogios,
que, conforme de onde vêm,
ofendem e comprometem,
nenhuma importância têm.
Então qual o prazer, a onda, a emoção,
de ser xingado e aplaudido,
em público, por desconhecidos,
qual o motivo, a razão, o sentido,
de tanto tempo perdido ?
E, no entanto, disputam uma curtida
como quem vai num prato de comida.
Novo velho ano novo
“Novo ano começou, mas tudo continua tristemente igual”. Ouvi isso ontem dito por uma senhora na rua quando voltava para casa, e pensei como para mim foi e é significativo o rito de passagem de ano, que afinal, nada mais é que a ritualização do decorrer dos dias. Um respiro, uma subida a superfície para tomar fôlego e voltar a nadar o tempo presente.
E se, “tudo continua tristemente igual”, também dialética e contraditoriamente já se mostra também tudo diferente. Porque esse respiro necessário do cotidiano caótico e sufocante ajuda a rever planos, traçar novas rotas, reavaliar projetos, refazer caminhos. Possibilita reorganizar prioridades, buscar trazer à tona sonhos submersos e escondidos pelos dias acinzentados pelo capitalismo.
De alguma forma, esse hiato nos dias, ajuda a continuar viva em nós a busca por outra forma de sociabilidade, a não sucumbirmos a dor do mundo capitalista que nos adoece e nos mata cada dia de maneira mais cruel e brutal, banalizando nossas vidas.
Conduz para a luz a recordação que o tempo histórico não é estático, passa, ainda que lentamente, passa. E que, se estamos cada vez mais em tempos envoltos em barbárie, também dialeticamente, estamos vizinhos da potência de uma efetivação da revolução da classe trabalhadora.
Então, sim, os dias continuam tristemente iguais, mas a passagem do ano, nos deu a concretização de uma pausa, respiro, tomamos fôlego para os próximos gritos de longe tão necessários e indispensáveis, para continuarmos a nadar rumo a uma sociedade justa, efetivamente humana e emancipada.
E se, “tudo continua tristemente igual”, também dialética e contraditoriamente já se mostra também tudo diferente. Porque esse respiro necessário do cotidiano caótico e sufocante ajuda a rever planos, traçar novas rotas, reavaliar projetos, refazer caminhos. Possibilita reorganizar prioridades, buscar trazer à tona sonhos submersos e escondidos pelos dias acinzentados pelo capitalismo.
De alguma forma, esse hiato nos dias, ajuda a continuar viva em nós a busca por outra forma de sociabilidade, a não sucumbirmos a dor do mundo capitalista que nos adoece e nos mata cada dia de maneira mais cruel e brutal, banalizando nossas vidas.
Pode servir para lembrar, mesmo quando já se rouba da memória, o caráter sempre presente da possibilidade humana de fazer sua própria história enquanto coletividade, de se recriar através da transformação da natureza para melhoria de suas condições de subsistência. Assim como, pode marcar e evidenciar a verdade quase esquecida de que não somos o capital e por isso podemos e vamos sobreviver para além dele.
Conduz para a luz a recordação que o tempo histórico não é estático, passa, ainda que lentamente, passa. E que, se estamos cada vez mais em tempos envoltos em barbárie, também dialeticamente, estamos vizinhos da potência de uma efetivação da revolução da classe trabalhadora.
Então, sim, os dias continuam tristemente iguais, mas a passagem do ano, nos deu a concretização de uma pausa, respiro, tomamos fôlego para os próximos gritos de longe tão necessários e indispensáveis, para continuarmos a nadar rumo a uma sociedade justa, efetivamente humana e emancipada.
Pátria tumular
E mudámos de conversa para cada um de nós poder ruminar em segredo o desgosto de ter por pátria esta pedra de jazigo rectangular que nos sufoca...José Gomes Ferreira, "Dias comuns"
Batam forte as panelas para atender ao pedido de Bolsonaro
A vida não está fácil pra ninguém. Um senador escondeu dinheiro entre as nádegas e continua sendo senador. Um ex-assessor parlamentar escondeu na pele do pênis doses de cocaína e foi preso. E para não perder o apoio dos seus devotos, Bolsonaro se opõe à vacinação infantil e arrisca a vida da filha de 11 anos.
Em novo recorde, o mundo ultrapassa 1,7 milhão de casos da Covid-19 em 24 horas. Consultas dobram na rede de Saúde de São Paulo com aumento nos diagnósticos de covid e influenza. E embora tenham caído os casos de gripe no Rio, os de covid sobem logo quando turistas lotam a cidade à espera do novo ano.
De férias enquanto chuvas torrenciais matam e desalojam milhares de pessoas, Bolsonaro deu por encerrado o diálogo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Segundo ele, é “impossível” entender-se com o almirante Antônio Barra Torres, presidente da Agência, um defensor da vacinação dos pequenos.
Diálogo, para Bolsonaro, significa: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Esquece que Barra Torres, assim como ele, tem mandato e não pode ser demitido. O almirante tem juízo também, e aprendeu na caserna que ordens absurdas não se cumprem. De resto, mais de 90% dos brasileiros são a favor da vacina.
Em sua última live do pior ano de nossas vidas, Bolsonaro retomou temas que lhe são caros. Disse que seu governo, contra todas as evidências, é impermeável à corrupção. Afirmou que propagar notícias falsas é exercício de liberdade de opinião. E novamente lançou dúvidas sobre a segurança do voto eletrônico.
Justificou-se por não ir à Bahia ver os estragos produzidos pelas inundações: a despesa com o deslocamento seria pesada demais e acabaria debitada no seu cartão corporativo. Não mencionou que a despesa com suas férias também será. Férias, não. Ele está em campanha para se reeleger com tudo pago pelo distinto público.
Aproveitou a live e anunciou que hoje falará ao país pela televisão. Convidou as pessoas do bem a escutá-lo, e os adversários a recepcioná-lo com um panelaço. Então, por que não lhe dar uma trégua e atender ao seu pedido imbuídos do mais elevado espírito cristão? Que batam forte as panelas, e demoradamente!
Feliz Ano Novo para todos – menos para Bolsonaro.
Em novo recorde, o mundo ultrapassa 1,7 milhão de casos da Covid-19 em 24 horas. Consultas dobram na rede de Saúde de São Paulo com aumento nos diagnósticos de covid e influenza. E embora tenham caído os casos de gripe no Rio, os de covid sobem logo quando turistas lotam a cidade à espera do novo ano.
De férias enquanto chuvas torrenciais matam e desalojam milhares de pessoas, Bolsonaro deu por encerrado o diálogo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Segundo ele, é “impossível” entender-se com o almirante Antônio Barra Torres, presidente da Agência, um defensor da vacinação dos pequenos.
Diálogo, para Bolsonaro, significa: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Esquece que Barra Torres, assim como ele, tem mandato e não pode ser demitido. O almirante tem juízo também, e aprendeu na caserna que ordens absurdas não se cumprem. De resto, mais de 90% dos brasileiros são a favor da vacina.
Em sua última live do pior ano de nossas vidas, Bolsonaro retomou temas que lhe são caros. Disse que seu governo, contra todas as evidências, é impermeável à corrupção. Afirmou que propagar notícias falsas é exercício de liberdade de opinião. E novamente lançou dúvidas sobre a segurança do voto eletrônico.
Justificou-se por não ir à Bahia ver os estragos produzidos pelas inundações: a despesa com o deslocamento seria pesada demais e acabaria debitada no seu cartão corporativo. Não mencionou que a despesa com suas férias também será. Férias, não. Ele está em campanha para se reeleger com tudo pago pelo distinto público.
Aproveitou a live e anunciou que hoje falará ao país pela televisão. Convidou as pessoas do bem a escutá-lo, e os adversários a recepcioná-lo com um panelaço. Então, por que não lhe dar uma trégua e atender ao seu pedido imbuídos do mais elevado espírito cristão? Que batam forte as panelas, e demoradamente!
Feliz Ano Novo para todos – menos para Bolsonaro.
O presidente sem compaixão
Nos últimos dias causa perplexidade a indiferença com que o presidente da República lida com o desastre das inundações no sul da Bahia e norte de Minas. Enquanto seus governados padecem sob as águas, Jair Bolsonaro farreia sobre elas, no Guarujá ou em Santa Catarina.
A catástrofe ambiental que flagela milhares, destruindo casas e bens, ceifando vidas e arruinando a já precária infraestrutura local, é insuficiente para comover o presidente, que frui de aprazível folga à beira-mar como se nada de grave acontecesse no país que ele pretensamente governa. Questionado por um adulador sobre sua permanência até o fim de semana do Ano Novo, retorquiu reveladoramente: “Espero que não tenha que retornar antes”.
Tal declaração suscita outra pergunta: o que ainda precisaria acontecer para que Bolsonaro atinasse quanto à inadequação do momento para folguedos nas águas verdes do litoral catarinense? Seu comportamento agora, bem como sua conduta pregressa, sugere não haver nada que possa sensibilizar o presidente quanto àquilo que momentos como este requerem: recato e empatia.
Desde que a situação se agravou com as fortes chuvas, na segunda semana de dezembro, o presidente encontrou tempo para ir até o local da tragédia num único momento, dia 12, quando sobrevoou áreas atingidas. Em todo o período, manifestou-se sobre o que ocorria ali apenas três vezes, com declarações e aparições reproduzidas no Twitter dele e no da Secretaria de Comunicação da Presidência. As providências palpáveis, deixou para alguns de seus ministros, governos estaduais e municipais. Como noutros momentos, Bolsonaro delegou a terceiros a responsabilidade pelo encaminhamento de ações que a ele caberia liderar.
Enquanto alguns trabalhavam, o presidente folgava. Não à toa o tópico #BolsonaroVagabundo figurou entre os mais postados nas redes sociais nesses dias.
Todavia, sobrevoos e declarações não solucionam problemas concretos de flagelados; são apenas demonstrações (necessárias) de alguma preocupação e empatia. Mais efetivo, por certo, é trabalhar - algo complicado de se fazer durante a folga. Nem seria de se esperar que o presidente fosse seguidas vezes à região ou mudasse a sede do governo temporariamente para lá - embora, costumeiramente em governos normais, coisas assim sejam feitas. Entretanto, diante das incumbências do cargo, um governante sensato interromperia o descanso, deixando-o para momentos menos trágicos.
O problema é que Bolsonaro está muito longe de ser esse governante sensato. Por um lado, é provável que o desdém para com o problema o desgaste ainda mais. Por outro, a incapacidade para notar a gravidade de sua postura decorre de uma espantosa e profunda ausência de compaixão.
O filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a importância desse sentimento para a vida em sociedade em seu último livro, “Duas ideias filosóficas e a pandemia”. Busca em Jean-Jacques Rousseau a noção de pitié no original em francês, que literalmente poderia ser traduzida como “pena” ou “dó”, mas que ele prefere verter como “compaixão”, pois o termo denota um sentimento mais igualitário e, portanto, respeitoso. Janine Ribeiro aponta que para Rousseau “o que nos caracteriza [como seres humanos] é a capacidade de compartilhar o sofrimento de qualquer outro ser vivo. Observamos outros viventes sofrerem - e então sofremos juntos.”
Pois bem, Bolsonaro já demonstrou repetidas vezes a incapacidade para compadecer de outras pessoas. Ora faz o culto à tortura e a torturadores, escarnecendo das vítimas; ora faz troça da dificuldade para respirar dos acometidos pela Covid; ora faz pouco caso dos mortos pela doença: “E daí, quer que eu faça o quê?”. Há pouco tempo, em setembro último, disse sobre pessoas que morreram: “Muitas tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”. Para Bolsonaro, que com seu negacionismo contribuiu para disseminar a doença, ela apenas acelerou um iminente descarte de seres humanos menos aptos a viver por mais tempo. Se isso não for falta de compaixão, o que mais seria?
Ironicamente, o próprio Bolsonaro teve em seu benefício, durante a disputa que o levou à Presidência, a compaixão de muitos de seus concidadãos. A facada que poderia lhe ter ceifado a vida em Juiz de Fora despertou a imediata solidariedade de muita gente - inclusive de adversários, que condenaram o atentado e compadeceram dele. Da mesma forma, muitos eleitores foram tocados pelo seu sofrimento, amplamente divulgado por vídeos, passando a vê-lo com mais simpatia, talvez ao ponto de votar nele.
Aliás, esse é um aspecto importante, em que se podem confundir causa e consequência. Quem compadece de outro ser, nele vê algo valoroso, mas não é a compaixão que gera a valorização do outro - e sim o contrário. Compadecemos daqueles aos quais damos valor, seja porque os vemos como dignos, amamos ou os temos como iguais a nós.
É mais difícil ter compaixão por algo ou alguém que se despreza, odeia ou repugna. Eis porque não se costuma ter pena de ratos e baratas ao exterminá-los e porque o discurso de ódio costuma equiparar inimigos a seres repulsivos, tais como ratos ou baratas, justificando violências que se praticam contra eles e até mesmo sua eliminação.
Apesar do dever de governar seus concidadãos, ao não compadecer de seu sofrimento, optando por se divertir em vez de trabalhar por seu bem, o presidente Bolsonaro explicita a indiferença, o pouco apreço ou mesmo o desprezo que nutre por eles. Mas como bem governar ao acalentar tais sentimentos por seus governados, isto é, por aqueles que merecem seus cuidados?
Agindo assim, o presidente demonstra que a tirania (má forma de governo a cargo de um indivíduo, que se beneficia em prejuízo da sociedade) não corresponde só a jeitos autocráticos de gerir o Estado, mas também a maneiras propositalmente indiferentes, displicentes e danosas para com os cidadãos. Tiranos são governantes sem compaixão. Bolsonaro não a tem.
A catástrofe ambiental que flagela milhares, destruindo casas e bens, ceifando vidas e arruinando a já precária infraestrutura local, é insuficiente para comover o presidente, que frui de aprazível folga à beira-mar como se nada de grave acontecesse no país que ele pretensamente governa. Questionado por um adulador sobre sua permanência até o fim de semana do Ano Novo, retorquiu reveladoramente: “Espero que não tenha que retornar antes”.
Tal declaração suscita outra pergunta: o que ainda precisaria acontecer para que Bolsonaro atinasse quanto à inadequação do momento para folguedos nas águas verdes do litoral catarinense? Seu comportamento agora, bem como sua conduta pregressa, sugere não haver nada que possa sensibilizar o presidente quanto àquilo que momentos como este requerem: recato e empatia.
Desde que a situação se agravou com as fortes chuvas, na segunda semana de dezembro, o presidente encontrou tempo para ir até o local da tragédia num único momento, dia 12, quando sobrevoou áreas atingidas. Em todo o período, manifestou-se sobre o que ocorria ali apenas três vezes, com declarações e aparições reproduzidas no Twitter dele e no da Secretaria de Comunicação da Presidência. As providências palpáveis, deixou para alguns de seus ministros, governos estaduais e municipais. Como noutros momentos, Bolsonaro delegou a terceiros a responsabilidade pelo encaminhamento de ações que a ele caberia liderar.
Enquanto alguns trabalhavam, o presidente folgava. Não à toa o tópico #BolsonaroVagabundo figurou entre os mais postados nas redes sociais nesses dias.
Todavia, sobrevoos e declarações não solucionam problemas concretos de flagelados; são apenas demonstrações (necessárias) de alguma preocupação e empatia. Mais efetivo, por certo, é trabalhar - algo complicado de se fazer durante a folga. Nem seria de se esperar que o presidente fosse seguidas vezes à região ou mudasse a sede do governo temporariamente para lá - embora, costumeiramente em governos normais, coisas assim sejam feitas. Entretanto, diante das incumbências do cargo, um governante sensato interromperia o descanso, deixando-o para momentos menos trágicos.
O problema é que Bolsonaro está muito longe de ser esse governante sensato. Por um lado, é provável que o desdém para com o problema o desgaste ainda mais. Por outro, a incapacidade para notar a gravidade de sua postura decorre de uma espantosa e profunda ausência de compaixão.
O filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a importância desse sentimento para a vida em sociedade em seu último livro, “Duas ideias filosóficas e a pandemia”. Busca em Jean-Jacques Rousseau a noção de pitié no original em francês, que literalmente poderia ser traduzida como “pena” ou “dó”, mas que ele prefere verter como “compaixão”, pois o termo denota um sentimento mais igualitário e, portanto, respeitoso. Janine Ribeiro aponta que para Rousseau “o que nos caracteriza [como seres humanos] é a capacidade de compartilhar o sofrimento de qualquer outro ser vivo. Observamos outros viventes sofrerem - e então sofremos juntos.”
Pois bem, Bolsonaro já demonstrou repetidas vezes a incapacidade para compadecer de outras pessoas. Ora faz o culto à tortura e a torturadores, escarnecendo das vítimas; ora faz troça da dificuldade para respirar dos acometidos pela Covid; ora faz pouco caso dos mortos pela doença: “E daí, quer que eu faça o quê?”. Há pouco tempo, em setembro último, disse sobre pessoas que morreram: “Muitas tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”. Para Bolsonaro, que com seu negacionismo contribuiu para disseminar a doença, ela apenas acelerou um iminente descarte de seres humanos menos aptos a viver por mais tempo. Se isso não for falta de compaixão, o que mais seria?
Ironicamente, o próprio Bolsonaro teve em seu benefício, durante a disputa que o levou à Presidência, a compaixão de muitos de seus concidadãos. A facada que poderia lhe ter ceifado a vida em Juiz de Fora despertou a imediata solidariedade de muita gente - inclusive de adversários, que condenaram o atentado e compadeceram dele. Da mesma forma, muitos eleitores foram tocados pelo seu sofrimento, amplamente divulgado por vídeos, passando a vê-lo com mais simpatia, talvez ao ponto de votar nele.
Aliás, esse é um aspecto importante, em que se podem confundir causa e consequência. Quem compadece de outro ser, nele vê algo valoroso, mas não é a compaixão que gera a valorização do outro - e sim o contrário. Compadecemos daqueles aos quais damos valor, seja porque os vemos como dignos, amamos ou os temos como iguais a nós.
É mais difícil ter compaixão por algo ou alguém que se despreza, odeia ou repugna. Eis porque não se costuma ter pena de ratos e baratas ao exterminá-los e porque o discurso de ódio costuma equiparar inimigos a seres repulsivos, tais como ratos ou baratas, justificando violências que se praticam contra eles e até mesmo sua eliminação.
Apesar do dever de governar seus concidadãos, ao não compadecer de seu sofrimento, optando por se divertir em vez de trabalhar por seu bem, o presidente Bolsonaro explicita a indiferença, o pouco apreço ou mesmo o desprezo que nutre por eles. Mas como bem governar ao acalentar tais sentimentos por seus governados, isto é, por aqueles que merecem seus cuidados?
Agindo assim, o presidente demonstra que a tirania (má forma de governo a cargo de um indivíduo, que se beneficia em prejuízo da sociedade) não corresponde só a jeitos autocráticos de gerir o Estado, mas também a maneiras propositalmente indiferentes, displicentes e danosas para com os cidadãos. Tiranos são governantes sem compaixão. Bolsonaro não a tem.
Quem ama, cuida
Somos uma geração perplexa, somos uma geração insegura, somos uma geração aflita — mas, como tudo tem seu lado bom, somos uma geração questionadora.
O que existe por aí não nos satisfaz. Sofremos com a falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a desmoralização generalizada que contamina velhos e jovens, com uma baixa auto-estima e descaso que, penso eu, transpareceram em nossa equipe de futebol na Copa do Mundo.
Algum remédio deve ser buscado na realidade, sem desprezar a força da imaginação e a raiz das tradições — até no trato com as crianças.
Uma duradoura influência em minha vida, meu trabalho e arte, foram os contos de fadas: antiquíssimas histórias populares revistas e divulgadas por Andersen e pelos Irmãos Grimm, para povoar e enriquecer alma de milhões de crianças — e adultos.
Esses relatos, plenos de fantasia, falam de realidades e mitos arcaicos que transcendem linguagem, raça e geografia, e nos revelam.
Nessa literatura infantil reúnem-se dois elementos que me apaixonam: o belo e o sinistro. Ela abre, através da imaginação, olhos e medos para a vida real, tecida de momentos bons e ameaças sinistras, experiências divertidas e outras dolorosas — também na infância.
Na realidade, nem sempre os fortes vencem e os frágeis são anulados: a força da inteligência de pessoas, grupos, ou povos ditos “fracos”, inúmeras vezes derrota a brutalidade dos “fortes” menos iluminados. Porém o mal existe, a perversão existe, atualmente a impunidade reina neste país nosso, confundindo critérios que antes nos orientavam. Cabe à família, à escola, e a qualquer pessoa bem intencionada, reinstaurar alguns fundamentos de vida e instaurar novos.
Não vejo isso em certa — não generalizada — tendência para uma educação imbecilizante de nossas crianças, segundo a qual só se deve aprender brincando, a escola passou a ser quase um pátio tumultuado, e a falta de respeito reproduz o que acontece tanto em casa quanto em alguns altos escalões do país.
Essa mesma corrente de pensamento quer mutilar histórias infantis arcaicas como a do Chapeuzinho Vermelho: agora o Lobo acaba amigo da Vovó… e nada de devorar a velha, nada de abrir a barriga da fera e retirá-la outra vez. Tudo numa boa, todos na mais santa paz, tudo de brincadeirinha — como não é assim a vida.
Modificam-se textos de cantigas como “Atirei o pau no gato”, transformando-a em um ridículo “Não atire o pau no gato” e outras bobajadas, porque o gato é bonzinho e nós devemos ser idem, no mais detestável politicamente correto que já vi.
O mundo não é assim. Coisas más e assustadoras acontecem, por isso nossas crianças e jovens devem ser preparados para a realidade. Não com pessimismo ou cinismo, mas com a força de um otimismo lúcido.
Medo faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser terror da violência doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas — mas o medo natural e saudável que nos faz cautelosos, pois nem todo mundo é bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes são modelos de dignidade. Uma dose de realismo no trato com crianças ajudará a lhes dar o necessário discernimento, habilidade para perceber o positivo e o negativo, e escolher melhor.
Temos muitos adolescentes infantilizados pelo excesso de proteção paterna ou pela sua omissão, na gravíssima crise de autoridade que nos assola; temos jovens adultos incapazes porque quase nada lhes foi exigido, nem na escola, nem em casa. Talvez tenha lhes faltado a essencial atenção e interesse dos pais, na onda de “tudo numa boa”.
Dar a volta por cima significará mudar algumas posturas e opções, exigir mais de nós mesmos e de nossos filhos, de professores e alunos, dos governos, das instituições. Ou vamos transformar as novas gerações em fracotes despreparados, vítimas fáceis das armadilhas que espreitam de todos os lados, no meio do honrado e do amoroso — que também existem e precisam se multiplicar.
Não prego desconfiança básica, mas uma perspectiva menos alienada: duendes de pesadelo aparecem em nosso cotidiano. Nem todos os amigos, vizinhos, parentes, professores ou autoridades nos amam e nos protegem. Nem todos são boas pessoas, nem todos são preparados para sua função, nem todos são saudáveis.
Para construir de forma mais positiva nossa vida, é preciso, repito, dispor da melhor das armas, que temos de conquistar sozinhos, duramente, quando não a recebemos em casa nem na escola: discernimento. Capacidade de analisar, argumentar, e escolher para nosso bem — o que nem sempre significa comodidade ou sucesso fácil.
Quem ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país — pode ser difícil, mas é de uma assustadora simplicidade, e não vejo outro caminho.
O que existe por aí não nos satisfaz. Sofremos com a falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a desmoralização generalizada que contamina velhos e jovens, com uma baixa auto-estima e descaso que, penso eu, transpareceram em nossa equipe de futebol na Copa do Mundo.
Algum remédio deve ser buscado na realidade, sem desprezar a força da imaginação e a raiz das tradições — até no trato com as crianças.
Uma duradoura influência em minha vida, meu trabalho e arte, foram os contos de fadas: antiquíssimas histórias populares revistas e divulgadas por Andersen e pelos Irmãos Grimm, para povoar e enriquecer alma de milhões de crianças — e adultos.
Esses relatos, plenos de fantasia, falam de realidades e mitos arcaicos que transcendem linguagem, raça e geografia, e nos revelam.
Nessa literatura infantil reúnem-se dois elementos que me apaixonam: o belo e o sinistro. Ela abre, através da imaginação, olhos e medos para a vida real, tecida de momentos bons e ameaças sinistras, experiências divertidas e outras dolorosas — também na infância.
Na realidade, nem sempre os fortes vencem e os frágeis são anulados: a força da inteligência de pessoas, grupos, ou povos ditos “fracos”, inúmeras vezes derrota a brutalidade dos “fortes” menos iluminados. Porém o mal existe, a perversão existe, atualmente a impunidade reina neste país nosso, confundindo critérios que antes nos orientavam. Cabe à família, à escola, e a qualquer pessoa bem intencionada, reinstaurar alguns fundamentos de vida e instaurar novos.
Não vejo isso em certa — não generalizada — tendência para uma educação imbecilizante de nossas crianças, segundo a qual só se deve aprender brincando, a escola passou a ser quase um pátio tumultuado, e a falta de respeito reproduz o que acontece tanto em casa quanto em alguns altos escalões do país.
Essa mesma corrente de pensamento quer mutilar histórias infantis arcaicas como a do Chapeuzinho Vermelho: agora o Lobo acaba amigo da Vovó… e nada de devorar a velha, nada de abrir a barriga da fera e retirá-la outra vez. Tudo numa boa, todos na mais santa paz, tudo de brincadeirinha — como não é assim a vida.
Modificam-se textos de cantigas como “Atirei o pau no gato”, transformando-a em um ridículo “Não atire o pau no gato” e outras bobajadas, porque o gato é bonzinho e nós devemos ser idem, no mais detestável politicamente correto que já vi.
O mundo não é assim. Coisas más e assustadoras acontecem, por isso nossas crianças e jovens devem ser preparados para a realidade. Não com pessimismo ou cinismo, mas com a força de um otimismo lúcido.
Medo faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser terror da violência doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas — mas o medo natural e saudável que nos faz cautelosos, pois nem todo mundo é bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes são modelos de dignidade. Uma dose de realismo no trato com crianças ajudará a lhes dar o necessário discernimento, habilidade para perceber o positivo e o negativo, e escolher melhor.
Temos muitos adolescentes infantilizados pelo excesso de proteção paterna ou pela sua omissão, na gravíssima crise de autoridade que nos assola; temos jovens adultos incapazes porque quase nada lhes foi exigido, nem na escola, nem em casa. Talvez tenha lhes faltado a essencial atenção e interesse dos pais, na onda de “tudo numa boa”.
Dar a volta por cima significará mudar algumas posturas e opções, exigir mais de nós mesmos e de nossos filhos, de professores e alunos, dos governos, das instituições. Ou vamos transformar as novas gerações em fracotes despreparados, vítimas fáceis das armadilhas que espreitam de todos os lados, no meio do honrado e do amoroso — que também existem e precisam se multiplicar.
Não prego desconfiança básica, mas uma perspectiva menos alienada: duendes de pesadelo aparecem em nosso cotidiano. Nem todos os amigos, vizinhos, parentes, professores ou autoridades nos amam e nos protegem. Nem todos são boas pessoas, nem todos são preparados para sua função, nem todos são saudáveis.
Para construir de forma mais positiva nossa vida, é preciso, repito, dispor da melhor das armas, que temos de conquistar sozinhos, duramente, quando não a recebemos em casa nem na escola: discernimento. Capacidade de analisar, argumentar, e escolher para nosso bem — o que nem sempre significa comodidade ou sucesso fácil.
Quem ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país — pode ser difícil, mas é de uma assustadora simplicidade, e não vejo outro caminho.
Lya Luft (1938-2021), “Em outras palavras”
A luta da América Latina por democracia
Adiantando: os ditadores da América Latina estão indo muito bem. Na Nicarágua, Daniel Ortega iniciará seu quinto mandato em janeiro, tendo prendido quase toda a oposição antes das últimas eleições e amordaçado o restante. Em Cuba, Miguel Díaz-Canel resistiu à chuva de protestos inesperados no meio do ano e impediu com sucesso novas tentativas. Para aqueles que não gostam da ilha, o amigo Ortega tem oferecido recentemente viagens sem visto − um gesto simpático à la Lukashenko, porque a ideia, é claro, é que os refugiados cubanos aumentem a pressão migratória sobre os EUA.
E ainda há a Venezuela, onde o chefe de Estado, Nicolás Maduro, pode assistir com prazer enquanto a própria oposição se desmancha. O Parlamento, eleito democraticamente pela última vez em 2015, acaba de aprovar uma nova prorrogação do mandato do presidente interino, Juan Guaidó. Mas sua legitimidade está desmoronando, e importantes representantes da oposição dividida retiraram seu apoio. Os partidários de Guaidó nos EUA e na União Europeia só podem esperar a menor atenção possível ao assunto, pois o fracasso dele poderia ser constrangedor.
Ditadores potenciais ou autoproclamados, como o presidente de El Salvador, Nayib Bukele − que, entretanto, trocou o título por "CEO" em sua conta no Twitter − de qualquer forma não dão mais importância às opiniões da Europa ou dos Estados Unidos. Bukele continua desfrutando de grande popularidade em El Salvador com seu comportamento machista. Embora sua introdução do bitcoin tenha provocado protestos, o enfraquecimento da separação dos Três Poderes atraiu menos atenção.
Críticas que, aliás, muitas vezes se justificam, afinal de contas, também nas democracias são tomadas decisões erradas terríveis. Mas, ao contrário da Rússia ou da China, porém, os governos nas democracias podem ser substituídos por meio das urnas.
E enquanto o crescimento constante da imigração aumenta a pressão sobre o sistema social dos Estados Unidos e alimenta a polarização, a Rússia e a China não têm que temer tal desafio, pois ninguém quer ir para lá. Apesar de todas as críticas aos Estados Unidos, o país continua sendo a opção dos latino-americanos que fogem da violência, da desigualdade social e da falta de oportunidades. Nos últimos anos e décadas, muitas pessoas têm perdido a esperança de alcançar mudanças positivas em seu próprio país através de suas próprias ações.
Ainda mais poderoso parece ser o sinal dado pelo Chile nos últimos dias (e meses): em uma democracia, uma sociedade civil vigilante pode mudar muitas coisas; em uma democracia, uma mudança pacífica de governo é possível; uma democracia pode até se dotar de uma nova Constituição. O que aconteceu no Chile refuta não só dúvidas sobre a democracia chilena, mas também dúvidas sobre a capacidade de funcionamento dos sistemas democráticos em geral.
O recém-eleito presidente Gabriel Boric mostrou que é possível transformar protestos poulares em política. Ao reconhecer rapidamente seu triunfo eleitoral, seus oponentes demonstraram o que é o decoro democrático. A população chilena mostrou, com sua alta participação nas urnas, que deixou de lado a resignação. E o resultado das eleições prova que o engajamento político vale a pena. Naturalmente, Boric também terá que passar pelo teste da realidade, pois terá que lutar diariamente por maiorias para implementar suas políticas. E a nova Constituição ainda precisa ser redigida e submetida a um plebiscito. Os processos democráticos são mais lentos do que as decisões relâmpago dos autocratas, mas são mais sustentáveis.
A democracia colombiana também é frequentemente posta em questão, e há muitas boas razões para duvidar do sistema de valores de representantes da classe política. Entretanto, há condições básicas para mudanças através de eleições, a Colômbia está familiarizada com a transferência pacífica do poder, e o presidente em exercício, Iván Duque, conhece a fidelidade constitucional. Afinal, ele não rasgou o acordo de paz com os guerrilheiros das Farc, mas continuou a implementá-lo, embora de forma vacilante e incompleta.
As eleições parlamentares e presidenciais de 2022 poderiam ser um novo plebiscito sobre como continuar tratando o acordo de paz, que ainda sofre com a mancha do referendo fracassado de 2016. Estas eleições também podem dar voz e mandato à parte pacífica do movimento de protesto social dos últimos meses, mostrando que a violência não é um requisito necessário para a mudança.
O Brasil será o próximo teste para a democracia, que, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, tão autocrático quanto imprevisível, se mostrou capaz de sobreviver. As eleições federais e presidenciais de outubro de 2022 mostrarão quão fortes são as correntes democráticas e quão influente é a sociedade civil.
O ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva tem boas chances, dadas suas alianças com outros setores políticos, mas ele não chega mais a representar uma verdadeira ruptura política. Entretanto, Lula poderia, como homem de transição, garantir que a crença na democracia no Brasil fosse novamente fortalecida.
Possivelmente o Brasil terá que ir às urnas mais uma vez para obter uma política que ofereça alternativas ao dilema entre o estado de bem-estar social e o capitalismo predatório, e proporcione ao país um modelo econômico sustentável.
Na última década, mais de 2 milhões de brasileiros deixaram seu país, assim como milhões de outros do México, Honduras, Guatemala, Haiti, ou de ditaduras como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Em situações difíceis, esperar por mudanças é pedir demais. Mudanças são difíceis e levam tempo. Mas em uma democracia isso é mais viável do que em uma ditadura.
E ainda há a Venezuela, onde o chefe de Estado, Nicolás Maduro, pode assistir com prazer enquanto a própria oposição se desmancha. O Parlamento, eleito democraticamente pela última vez em 2015, acaba de aprovar uma nova prorrogação do mandato do presidente interino, Juan Guaidó. Mas sua legitimidade está desmoronando, e importantes representantes da oposição dividida retiraram seu apoio. Os partidários de Guaidó nos EUA e na União Europeia só podem esperar a menor atenção possível ao assunto, pois o fracasso dele poderia ser constrangedor.
Ditadores potenciais ou autoproclamados, como o presidente de El Salvador, Nayib Bukele − que, entretanto, trocou o título por "CEO" em sua conta no Twitter − de qualquer forma não dão mais importância às opiniões da Europa ou dos Estados Unidos. Bukele continua desfrutando de grande popularidade em El Salvador com seu comportamento machista. Embora sua introdução do bitcoin tenha provocado protestos, o enfraquecimento da separação dos Três Poderes atraiu menos atenção.
O chamado mundo ocidental também está vendo cada vez mais na América Latina que suas ofertas não são mais tão irresistíveis e que suas ameaças não são mais tão eficazes. Com a Rússia e a China, outros parceiros estão disponíveis para ditadores, autocratas, cleptocratas e para aqueles que o querem ser. Estados que não questionam direitos humanos, democracia e Estado de direito. Estados que sabem como esconder o próprio autoritarismo por trás de fortes críticas e dúvidas sobre a integridade da comunidade ocidental de valores.
Críticas que, aliás, muitas vezes se justificam, afinal de contas, também nas democracias são tomadas decisões erradas terríveis. Mas, ao contrário da Rússia ou da China, porém, os governos nas democracias podem ser substituídos por meio das urnas.
E enquanto o crescimento constante da imigração aumenta a pressão sobre o sistema social dos Estados Unidos e alimenta a polarização, a Rússia e a China não têm que temer tal desafio, pois ninguém quer ir para lá. Apesar de todas as críticas aos Estados Unidos, o país continua sendo a opção dos latino-americanos que fogem da violência, da desigualdade social e da falta de oportunidades. Nos últimos anos e décadas, muitas pessoas têm perdido a esperança de alcançar mudanças positivas em seu próprio país através de suas próprias ações.
Ainda mais poderoso parece ser o sinal dado pelo Chile nos últimos dias (e meses): em uma democracia, uma sociedade civil vigilante pode mudar muitas coisas; em uma democracia, uma mudança pacífica de governo é possível; uma democracia pode até se dotar de uma nova Constituição. O que aconteceu no Chile refuta não só dúvidas sobre a democracia chilena, mas também dúvidas sobre a capacidade de funcionamento dos sistemas democráticos em geral.
O recém-eleito presidente Gabriel Boric mostrou que é possível transformar protestos poulares em política. Ao reconhecer rapidamente seu triunfo eleitoral, seus oponentes demonstraram o que é o decoro democrático. A população chilena mostrou, com sua alta participação nas urnas, que deixou de lado a resignação. E o resultado das eleições prova que o engajamento político vale a pena. Naturalmente, Boric também terá que passar pelo teste da realidade, pois terá que lutar diariamente por maiorias para implementar suas políticas. E a nova Constituição ainda precisa ser redigida e submetida a um plebiscito. Os processos democráticos são mais lentos do que as decisões relâmpago dos autocratas, mas são mais sustentáveis.
A democracia colombiana também é frequentemente posta em questão, e há muitas boas razões para duvidar do sistema de valores de representantes da classe política. Entretanto, há condições básicas para mudanças através de eleições, a Colômbia está familiarizada com a transferência pacífica do poder, e o presidente em exercício, Iván Duque, conhece a fidelidade constitucional. Afinal, ele não rasgou o acordo de paz com os guerrilheiros das Farc, mas continuou a implementá-lo, embora de forma vacilante e incompleta.
As eleições parlamentares e presidenciais de 2022 poderiam ser um novo plebiscito sobre como continuar tratando o acordo de paz, que ainda sofre com a mancha do referendo fracassado de 2016. Estas eleições também podem dar voz e mandato à parte pacífica do movimento de protesto social dos últimos meses, mostrando que a violência não é um requisito necessário para a mudança.
O Brasil será o próximo teste para a democracia, que, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, tão autocrático quanto imprevisível, se mostrou capaz de sobreviver. As eleições federais e presidenciais de outubro de 2022 mostrarão quão fortes são as correntes democráticas e quão influente é a sociedade civil.
O ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva tem boas chances, dadas suas alianças com outros setores políticos, mas ele não chega mais a representar uma verdadeira ruptura política. Entretanto, Lula poderia, como homem de transição, garantir que a crença na democracia no Brasil fosse novamente fortalecida.
Possivelmente o Brasil terá que ir às urnas mais uma vez para obter uma política que ofereça alternativas ao dilema entre o estado de bem-estar social e o capitalismo predatório, e proporcione ao país um modelo econômico sustentável.
Na última década, mais de 2 milhões de brasileiros deixaram seu país, assim como milhões de outros do México, Honduras, Guatemala, Haiti, ou de ditaduras como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Em situações difíceis, esperar por mudanças é pedir demais. Mudanças são difíceis e levam tempo. Mas em uma democracia isso é mais viável do que em uma ditadura.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Bolsonaro parece um turista no Palácio do Planalto
Nada mais simbólico do que o presidente andar de jet ski e dançar funk numa lancha, enquanto as casas de milhares de brasileiros estão sendo submersas por inundações, principalmente no sul da Bahia. Mas isso não é nenhuma novidade.
Em três anos de governo, Jair Messias Bolsonaro mostrou o desinteresse pelo cargo que ocupa. Ele tem sido um turista, e não um líder de governo e da nação. Andar de jet ski e de moto parece ser mais divertido e fácil do que liderar um país.
Bolsonaro já havia se omitido quando florestas brasileiras pegaram fogo e quando milhares morreram de coronavírus. Ele parece gostar do avanço da destruição, portanto não faz nada para detê-la. Às vezes, ainda sabota os bombeiros e joga gasolina nas chamas. Por outro lado, não sabe construir nada. Seu mandato presidencial é a continuação dos seus quase 30 anos como parlamentar, nos quais não criou nenhum projeto de lei digno de nota.
Por outro lado, ainda bem, diga-se de passagem. Assim, aqueles projetos malucos de costume, como a escola sem partido, já foram deixados de lado por ele. Assim como a criação de escolas militares em massa. Já não se fala mais em Olavo de Carvalho, graças a Deus, a não ser da fuga dele para os Estados Unidos. Aliás: de fugas hollywoodianas para lá, houve muitas ultimamente: o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, o blogueiro Allan dos Santos e aquele líder dos caminhoneiros que nem era líder dos caminhoneiros. Turma estranha.
E não se fala muito mais em Paulo Guedes. A última coisa que ouvi dele foi a explicação de como evitar pagar impostos ao criar empresas offshore no Panamá. O tal choque liberal na economia, por outro lado, ninguém viu. Ao invés de privatizar estatais como a Petrobras, o presidente quer mais interferência governamental para manipular o preço da gasolina. Como tantos outros governos antes dele já tinham feito.
E nada de combater a corrupção. Sob o governo Bolsonaro, acabou-se o lavajatismo. Ao invés disso, há rachadinhas generalizadas e orçamentos secretos. Sobraram, portanto, os velhos instrumentos dos populistas, nada mais. Alias, é a velha política que ele tinha prometido combater. Consequentemente, ele está de volta ao PL de Valdemar Costa Neto, de volta ao coração do Centrão. E não se ouve mais o general Heleno cantar "Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão".
Na América Latina, uma das regiões mais pobres e desiguais do planeta, o Brasil tinha dado sinais de se transformar num país sério, a partir de meados dos anos 1990. Tinha conseguido, pouco a pouco, ser destaque internacional na área de meio ambiente, de diplomacia global e de combate à pobreza. Tudo isso foi para o lixo no governo de Jair Messias. A única iniciativa de política externa foi repetir tudo o que Donald Trump fazia, até esse cair. Sem Trump, Jair Messias conversa com os garçons nas cúpulas internacionais.
Caetano Veloso já tinha cantado: "Nessa terra a dor é grande. E a ambição, pequena". Está na hora de ter mais ambição e botar alguém com visão e vontade de trabalhar na Presidência. O Brasil é grande demais para se apequenar com um presidente turista no Palácio do Planalto. A notícia triste é que, com tanta mamata, Jair Messias e sua família podem ficar o resto das suas vidas andando de jet ski e dançando funk num jatinho. Prova que a tal meritocracia não existe. Outra promessa que virou vento.
Thomas Milz
Em três anos de governo, Jair Messias Bolsonaro mostrou o desinteresse pelo cargo que ocupa. Ele tem sido um turista, e não um líder de governo e da nação. Andar de jet ski e de moto parece ser mais divertido e fácil do que liderar um país.
Bolsonaro já havia se omitido quando florestas brasileiras pegaram fogo e quando milhares morreram de coronavírus. Ele parece gostar do avanço da destruição, portanto não faz nada para detê-la. Às vezes, ainda sabota os bombeiros e joga gasolina nas chamas. Por outro lado, não sabe construir nada. Seu mandato presidencial é a continuação dos seus quase 30 anos como parlamentar, nos quais não criou nenhum projeto de lei digno de nota.
Por outro lado, ainda bem, diga-se de passagem. Assim, aqueles projetos malucos de costume, como a escola sem partido, já foram deixados de lado por ele. Assim como a criação de escolas militares em massa. Já não se fala mais em Olavo de Carvalho, graças a Deus, a não ser da fuga dele para os Estados Unidos. Aliás: de fugas hollywoodianas para lá, houve muitas ultimamente: o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, o blogueiro Allan dos Santos e aquele líder dos caminhoneiros que nem era líder dos caminhoneiros. Turma estranha.
E não se fala muito mais em Paulo Guedes. A última coisa que ouvi dele foi a explicação de como evitar pagar impostos ao criar empresas offshore no Panamá. O tal choque liberal na economia, por outro lado, ninguém viu. Ao invés de privatizar estatais como a Petrobras, o presidente quer mais interferência governamental para manipular o preço da gasolina. Como tantos outros governos antes dele já tinham feito.
E nada de combater a corrupção. Sob o governo Bolsonaro, acabou-se o lavajatismo. Ao invés disso, há rachadinhas generalizadas e orçamentos secretos. Sobraram, portanto, os velhos instrumentos dos populistas, nada mais. Alias, é a velha política que ele tinha prometido combater. Consequentemente, ele está de volta ao PL de Valdemar Costa Neto, de volta ao coração do Centrão. E não se ouve mais o general Heleno cantar "Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão".
Na América Latina, uma das regiões mais pobres e desiguais do planeta, o Brasil tinha dado sinais de se transformar num país sério, a partir de meados dos anos 1990. Tinha conseguido, pouco a pouco, ser destaque internacional na área de meio ambiente, de diplomacia global e de combate à pobreza. Tudo isso foi para o lixo no governo de Jair Messias. A única iniciativa de política externa foi repetir tudo o que Donald Trump fazia, até esse cair. Sem Trump, Jair Messias conversa com os garçons nas cúpulas internacionais.
Caetano Veloso já tinha cantado: "Nessa terra a dor é grande. E a ambição, pequena". Está na hora de ter mais ambição e botar alguém com visão e vontade de trabalhar na Presidência. O Brasil é grande demais para se apequenar com um presidente turista no Palácio do Planalto. A notícia triste é que, com tanta mamata, Jair Messias e sua família podem ficar o resto das suas vidas andando de jet ski e dançando funk num jatinho. Prova que a tal meritocracia não existe. Outra promessa que virou vento.
Thomas Milz
As Forças Armadas não são melhores do que o Brasil
Bolsonaro diz que não há corrupção em seu governo. Será uma grande ironia se, em seu último ano de governo, for confirmada a existência de um esquema milionário de desvio de dinheiro público justamente nas licitações das Forças Armadas.
O Tribunal de Contas da União está analisando indícios robustos de maracutaia nas licitações de compra de alimentos das corporações. É coisa de 87 milhões de reais.
Segundo a “Folha de S. Paulo”, o TCU identificou “alto risco de irregularidade” na atuação de empresas de fachada que têm o mesmo endereço, usam o mesmo computador e parecem estar ligadas a ex-militares.
Três dessas empresas teriam como sócio um ex-capitão do Exército, Vancler Augusto Geraldo, que foi condenado por corrupção em 2019 e expulso da corporação.
Obviamente, isso não significa que as Forças Armadas são corruptas.
O caso será apenas mais uma demonstração de que elas não podem se imaginar blindadas contra os maus instintos, nem possuidoras de um status moral superior ao das demais instituições brasileiras.
Graças a personagens infames como Bolsonaro, cavilosos como Augusto Heleno e incompetentes como Pazuello, nós, na verdade, já sabíamos que os processos rigorosos de formação e treinamento do Exército não são necessariamente “purificadores”.
Sabíamos também que muitos militares podem se comportar como sindicalistas de capacete e coturno, tão ávidos quanto qualquer integrante da CUT para se aboletar em cargos públicos bem remunerados. No governo Bolsonaro, são mais de 6 mil ocupando posições na administração federal.
Se o caso de corrupção for comprovado, será outro golpe na boa imagem que as Forças Armadas conquistaram nas últimas décadas.
As Forças Armadas não são melhores do que o Brasil. Nada as autoriza a exercer um “poder moderador” em momentos de crise interna, como quiseram fazer crer alguns militares e juristas assanhados nos últimos dois anos, com leituras desonestas do artigo 142 da Constituição.
O Tribunal de Contas da União está analisando indícios robustos de maracutaia nas licitações de compra de alimentos das corporações. É coisa de 87 milhões de reais.
Segundo a “Folha de S. Paulo”, o TCU identificou “alto risco de irregularidade” na atuação de empresas de fachada que têm o mesmo endereço, usam o mesmo computador e parecem estar ligadas a ex-militares.
Três dessas empresas teriam como sócio um ex-capitão do Exército, Vancler Augusto Geraldo, que foi condenado por corrupção em 2019 e expulso da corporação.
Obviamente, isso não significa que as Forças Armadas são corruptas.
O caso será apenas mais uma demonstração de que elas não podem se imaginar blindadas contra os maus instintos, nem possuidoras de um status moral superior ao das demais instituições brasileiras.
Graças a personagens infames como Bolsonaro, cavilosos como Augusto Heleno e incompetentes como Pazuello, nós, na verdade, já sabíamos que os processos rigorosos de formação e treinamento do Exército não são necessariamente “purificadores”.
Sabíamos também que muitos militares podem se comportar como sindicalistas de capacete e coturno, tão ávidos quanto qualquer integrante da CUT para se aboletar em cargos públicos bem remunerados. No governo Bolsonaro, são mais de 6 mil ocupando posições na administração federal.
Se o caso de corrupção for comprovado, será outro golpe na boa imagem que as Forças Armadas conquistaram nas últimas décadas.
As Forças Armadas não são melhores do que o Brasil. Nada as autoriza a exercer um “poder moderador” em momentos de crise interna, como quiseram fazer crer alguns militares e juristas assanhados nos últimos dois anos, com leituras desonestas do artigo 142 da Constituição.
Bolsonaro faz por merecer ser chamado de vagabundo nas redes
A vida de um chefe de Estado costuma ser muito dura e, como qualquer servidor público, ele tem direito a tirar férias. Todos tiram. No caso de Bolsonaro, o problema é que ele tirou férias quando chuvas torrenciais inundam a Bahia, matando 24 pessoas e desabrigando milhares delas. E agora avançam sobre Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas não só por isso.
Ao longo de sua vida, ele jamais se destacou como um sujeito que gostasse de trabalhar. Como soldado, gostava de disputar corridas de curto fôlego e foi elogiado por isso. Como vereador, primeiro, e deputado federal por quase 30 anos, dedicou-se mais ao descanso bem remunerado. Frequentemente era visto cochilando durante as sessões da Câmara. Compareceu a poucas reuniões de comissões.
É um presidente que mal dorme, mas não porque o emprego assim exija. Tem insônia e aproveita as madrugadas para bisbilhotar o que dizem a seu respeito nas redes. Chega ao Palácio do Planalto por volta das 7 horas da manhã. Cochila depois do almoço, e antes das 6 horas da tarde parte para o Palácio da Alvorada, onde mora. Terceiriza tudo o que pode, menos as diversões.
Somente este mês, esteve em Guarulhos, no litoral de São Paulo, entre os dias 17 e 23. Passeou de lancha e dançou funk. Voltou a Brasília para gravar sua mensagem de Natal ao lado de Michelle, a primeira-dama. Mas dois dias depois já estava na praia em São Francisco do Sul, Santa Catarina, onde se valeu de um jet-ski da Marinha para navegar com a mulher e a filha Laura.
É esperado em Brasília no próximo dia 4. Mandou avisar que no dia 5 participará de um jogo de futebol beneficente promovido por uma dupla de cantores sertanejos. Desconhece-se, por enquanto, o que pretende fazer ao longo de janeiro, ou o que parece mais provável: não fazer. Seus assessores garantem, contudo, que ele despacha com ministros por telefone.
São curtos despachos, como curtos são seus pronunciamentos oficiais. Deve-se ao seu vocabulário rastaquera e à sua falta de paciência para ler qualquer texto que exceda uma página. Nem mesmo portarias, decretos, Medidas Provisórias ele lê de cabo a rabo. Pede que leiam por ele, e assina-os. O que não o impede de alardear que não desejaria a ninguém a vida estafante que leva.
Não foi à Bahia depois que a situação por lá se agravou. E não pretende ir porque do ponto de vista eleitoral, ouviu Evandro Éboli, repórter deste blog, de um dos seus acompanhantes, a Bahia é um Estado “perdido” para ele. De fato, a Bahia é governada há 16 anos pelo PT. Votou em Lula duas vezes, duas vezes em Dilma, e está pronto para eleger Lula de novo.
Ocorre que ali Bolsonaro também tem muitos votos. E poderá perdê-los dada a sua indiferença com o sofrimento dos baianos. O governo argentino ofereceu ajuda humanitária aos atingidos pela chuva no Estado. Orientado por Bolsonaro, o Ministério das Relações Exteriores recusou a ajuda. O governo argentino é de esquerda e recepcionou Lula outro dia. Bolsonaro detestou.
A hashtag #BolsonaroVagabundo ficou entre os principais assuntos do Twitter por dois dias seguidos. Nesta madrugada, ainda estava. Faz sentido.
Ao longo de sua vida, ele jamais se destacou como um sujeito que gostasse de trabalhar. Como soldado, gostava de disputar corridas de curto fôlego e foi elogiado por isso. Como vereador, primeiro, e deputado federal por quase 30 anos, dedicou-se mais ao descanso bem remunerado. Frequentemente era visto cochilando durante as sessões da Câmara. Compareceu a poucas reuniões de comissões.
É um presidente que mal dorme, mas não porque o emprego assim exija. Tem insônia e aproveita as madrugadas para bisbilhotar o que dizem a seu respeito nas redes. Chega ao Palácio do Planalto por volta das 7 horas da manhã. Cochila depois do almoço, e antes das 6 horas da tarde parte para o Palácio da Alvorada, onde mora. Terceiriza tudo o que pode, menos as diversões.
Somente este mês, esteve em Guarulhos, no litoral de São Paulo, entre os dias 17 e 23. Passeou de lancha e dançou funk. Voltou a Brasília para gravar sua mensagem de Natal ao lado de Michelle, a primeira-dama. Mas dois dias depois já estava na praia em São Francisco do Sul, Santa Catarina, onde se valeu de um jet-ski da Marinha para navegar com a mulher e a filha Laura.
É esperado em Brasília no próximo dia 4. Mandou avisar que no dia 5 participará de um jogo de futebol beneficente promovido por uma dupla de cantores sertanejos. Desconhece-se, por enquanto, o que pretende fazer ao longo de janeiro, ou o que parece mais provável: não fazer. Seus assessores garantem, contudo, que ele despacha com ministros por telefone.
São curtos despachos, como curtos são seus pronunciamentos oficiais. Deve-se ao seu vocabulário rastaquera e à sua falta de paciência para ler qualquer texto que exceda uma página. Nem mesmo portarias, decretos, Medidas Provisórias ele lê de cabo a rabo. Pede que leiam por ele, e assina-os. O que não o impede de alardear que não desejaria a ninguém a vida estafante que leva.
Não foi à Bahia depois que a situação por lá se agravou. E não pretende ir porque do ponto de vista eleitoral, ouviu Evandro Éboli, repórter deste blog, de um dos seus acompanhantes, a Bahia é um Estado “perdido” para ele. De fato, a Bahia é governada há 16 anos pelo PT. Votou em Lula duas vezes, duas vezes em Dilma, e está pronto para eleger Lula de novo.
Ocorre que ali Bolsonaro também tem muitos votos. E poderá perdê-los dada a sua indiferença com o sofrimento dos baianos. O governo argentino ofereceu ajuda humanitária aos atingidos pela chuva no Estado. Orientado por Bolsonaro, o Ministério das Relações Exteriores recusou a ajuda. O governo argentino é de esquerda e recepcionou Lula outro dia. Bolsonaro detestou.
A hashtag #BolsonaroVagabundo ficou entre os principais assuntos do Twitter por dois dias seguidos. Nesta madrugada, ainda estava. Faz sentido.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
O ano em que o Brasil nasceu
No sábado, 1º de janeiro de 2022, começa o ano do bicentenário do nascimento do Brasil. Parece pouca coisa, mas será uma oportunidade para pensar numa terra que resolveu andar para a frente com seus 4,7 milhões de habitantes. Nela viviam duas grandes figuras: o príncipe Dom Pedro, de 23 anos, e José Bonifácio de Andrada, de 59 anos.
Passados dois séculos, o país tem 213 milhões, convive com a cavalaria do atraso e, dia sim, dia não, é obrigado a conviver com o negacionismo e as batatadas do “coronel” Marcelo Queiroga e do capitão Jair Bolsonaro. Ninguém se livra do presente, mas o ano do bicentenário traz um refresco. Quem quiser, numa hora vaga, poderá entrar na máquina do tempo para reviver o grande ano de 1822. Por alguns minutos, graças à rede, voltará a um tempo em que o Brasil olhou para o futuro.
O ano começará no próximo dia 9 de janeiro, quando Dom Pedro desafiou Lisboa e decidiu ficar no Rio. É o tal Dia do Fico. Como previu a inglesa Maria Graham, que morava no Rio, ele foi “decisivo para o destino do Brasil”. (Um coronel português achava que levaria o príncipe para Portugal puxando-o pelas orelhas. Oito meses depois, Pedro separou o Brasil de Portugal, e o coronel virou asterisco.)
Dom Pedro é um dos grandes personagens do século XIX. Proclamou a Independência do Brasil e governou a nova nação até 1831. Voltou a Portugal, comandou uma revolta contra o irmão e colocou a filha no trono. Morreu de tuberculose aos 35 anos. Pegou fama de estroina e mulherengo, mas foi muito mais que isso. Julgá-lo pelo que fazia deitado equivale a julgar o americano Thomas Jefferson pelos filhos que teve com a escrava Sally Hemings. A Constituição que Dom Pedro outorgou em 1824 durou até 1891 e foi a mais duradoura da série.
Dom Pedro e José Bonifácio formaram uma grande dupla. Mais velho, Andrada costurou a rebeldia do príncipe. Em junho de 1822, o Brasil não existia como nação, mas Bonifácio criou uma Secretaria dos Negócios Estrangeiros, articulando-se no Prata, em Londres e em Viena. Enquanto Pedro pegou fama de mulherengo, Bonifácio, com seus cabelos brancos, ficou com uma aura austera. Filha natural, ele também tinha. O professor Delfim Netto diz que o desentendimento que os separou em 1823 foi o primeiro grande drama da história da nova nação. Andrada queria um governo forte, talvez forte demais, com seu horror à imprensa livre. (Há 200 anos circularam no Rio centenas de jornais, alguns com vidas breves.)
A geração de 1822 foi injustamente abafada. Sumiram figuras como o futuro marquês de Barbacena, que, de Londres, propunha a Bonifácio em maio o fim do tráfico (leia-se contrabando) de africanos escravizados. O Brasil só se livraria dessa bola de ferro em 1850, mas essa é outra história, a do atraso.
A máquina do tempo levará os curiosos de 2022 a um bonito momento. No mínimo, livrará os viajantes da mediocridade presente. Em agosto de 1822, Bonifácio redigiu um manifesto às nações amigas. Parece pouca coisa, mas vê-se seu tamanho quando se sabe que, passados dois séculos, sem motivo plausível, o Brasil encrencou com China, Estados Unidos, França e Chile, noves fora a má vontade com as vacinas, questão pacificada antes mesmo de 1822 pelo pai de Pedro. Dom João VI criou a Junta Vacínica para conter a varíola. Afinal, ela havia matado o seu irmão. Desde 1817, vacinavam-se crianças no Rio.
Passados dois séculos, o país tem 213 milhões, convive com a cavalaria do atraso e, dia sim, dia não, é obrigado a conviver com o negacionismo e as batatadas do “coronel” Marcelo Queiroga e do capitão Jair Bolsonaro. Ninguém se livra do presente, mas o ano do bicentenário traz um refresco. Quem quiser, numa hora vaga, poderá entrar na máquina do tempo para reviver o grande ano de 1822. Por alguns minutos, graças à rede, voltará a um tempo em que o Brasil olhou para o futuro.
O ano começará no próximo dia 9 de janeiro, quando Dom Pedro desafiou Lisboa e decidiu ficar no Rio. É o tal Dia do Fico. Como previu a inglesa Maria Graham, que morava no Rio, ele foi “decisivo para o destino do Brasil”. (Um coronel português achava que levaria o príncipe para Portugal puxando-o pelas orelhas. Oito meses depois, Pedro separou o Brasil de Portugal, e o coronel virou asterisco.)
Dom Pedro é um dos grandes personagens do século XIX. Proclamou a Independência do Brasil e governou a nova nação até 1831. Voltou a Portugal, comandou uma revolta contra o irmão e colocou a filha no trono. Morreu de tuberculose aos 35 anos. Pegou fama de estroina e mulherengo, mas foi muito mais que isso. Julgá-lo pelo que fazia deitado equivale a julgar o americano Thomas Jefferson pelos filhos que teve com a escrava Sally Hemings. A Constituição que Dom Pedro outorgou em 1824 durou até 1891 e foi a mais duradoura da série.
Dom Pedro e José Bonifácio formaram uma grande dupla. Mais velho, Andrada costurou a rebeldia do príncipe. Em junho de 1822, o Brasil não existia como nação, mas Bonifácio criou uma Secretaria dos Negócios Estrangeiros, articulando-se no Prata, em Londres e em Viena. Enquanto Pedro pegou fama de mulherengo, Bonifácio, com seus cabelos brancos, ficou com uma aura austera. Filha natural, ele também tinha. O professor Delfim Netto diz que o desentendimento que os separou em 1823 foi o primeiro grande drama da história da nova nação. Andrada queria um governo forte, talvez forte demais, com seu horror à imprensa livre. (Há 200 anos circularam no Rio centenas de jornais, alguns com vidas breves.)
A geração de 1822 foi injustamente abafada. Sumiram figuras como o futuro marquês de Barbacena, que, de Londres, propunha a Bonifácio em maio o fim do tráfico (leia-se contrabando) de africanos escravizados. O Brasil só se livraria dessa bola de ferro em 1850, mas essa é outra história, a do atraso.
A máquina do tempo levará os curiosos de 2022 a um bonito momento. No mínimo, livrará os viajantes da mediocridade presente. Em agosto de 1822, Bonifácio redigiu um manifesto às nações amigas. Parece pouca coisa, mas vê-se seu tamanho quando se sabe que, passados dois séculos, sem motivo plausível, o Brasil encrencou com China, Estados Unidos, França e Chile, noves fora a má vontade com as vacinas, questão pacificada antes mesmo de 1822 pelo pai de Pedro. Dom João VI criou a Junta Vacínica para conter a varíola. Afinal, ela havia matado o seu irmão. Desde 1817, vacinavam-se crianças no Rio.
País em demolição
Bolsonaro assumiu o Brasil com:
– Lula Preso
– PT destruído
– Inflação controlada
– Dólar a R$3,00
– Lava Jato funcionando
– Mercado estável
E o Bolsonaro conseguiu destruir tudo isso em apenas 3 anos.
Rubinho Nunes (MBL), Vereador paulistano
– Lula Preso
– PT destruído
– Inflação controlada
– Dólar a R$3,00
– Lava Jato funcionando
– Mercado estável
E o Bolsonaro conseguiu destruir tudo isso em apenas 3 anos.
Rubinho Nunes (MBL), Vereador paulistano
Orçamento da fome
Oguz Gurel (Turquia) |
Duas reportagens desta Folha também ilustram o desatino da inversão de prioridades com o dinheiro do contribuinte. Ana Luiza Albuquerque revelou que 13 motociatas do genocida, para apregoar o golpismo, levaram R$ 5 milhões dos cofres públicos. E Constança Rezende mostrou que o Ministério da Defesa usou dinheiro de combate à Covid para comprar filé mignon, picanha, bacalhau, camarão, salmão e bebidas. O cardápio de luxo para os fardados custou R$ 535 mil.
Somados, esses gastos chegam a R$ 6,6 bilhões e uns quebrados. Numa conta simples, para dar uma ordem de grandeza, seria suficiente para comprar mais de 13 milhões de cestas básicas (considerando um preço médio de R$ 500 por cesta). Isso daria de comer a muita gente.
Mais de 19 milhões de pessoas passam fome no Brasil e mais da metade da população (117 milhões) convive com algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não consegue comer o que precisa. Às vésperas do Natal, brasileiros estavam na fila do osso num açougue em Cuiabá, a capital do agronegócio. No Rio Grande do Norte, sertanejos que voltaram a caçar lagarto para enganar a fome só tiveram o que comer na ceia graças a doações.
No caso do fundo eleitoral, é preciso assinalar que algum recurso público, de fato, tem que ser reservado para as campanhas. O fim do financiamento de candidaturas por empresas foi uma decisão acertada.
Mas as campanhas não podem ser tão caras. Democracia tem um custo? Sem dúvida. Mas não pode ser esse o preço. Não existe democracia se o cidadão não tem o direito humano mais básico de todos assegurado: o direito à alimentação e à vida.
A triste sensação de ser um país ignorado
Há um momento, na 3ª temporada da série de TV “Succession”, em que a família do magnata Logan Roy, interpretado por Brian Cox, discute o apoio a um candidato republicano à presidência dos Estados Unidos. No meio da conversa, a filha Shiv Roy (atriz Sarah Snook) lembra que o preferido da família era fascista e que, se eleito, a América correria o risco de se transformar em uma “f*** (palavrão) república russa, berlusconiana ou brasileira”.
A citação passa meio despercebida para quem não presta atenção no inglês, porque a legenda em português traduz “Brazilian” por “tupiniquim”. Mas essa passagem ilustra, de forma quase subliminar, a triste e vergonhosa imagem adquirida pelo Brasil no exterior nos últimos três anos.
Discorrendo sobre esse tema em artigo (21/11/21) na “Folha de S.Paulo”, Candido Bracher, ex-presidente do Itaú Unibanco, observa que a imagem do Brasil foi cruelmente retratada em um vídeo em que o presidente Jair Bolsonaro “aparece perdido entre os líderes do G20, [em Roma, no mês passado], perambulando pelo salão sem encontrar outra forma de aliviar seu isolamento que não fazendo graça com garçons, que sorriam constrangidos”.
Os Roy, família ficcional retratada em “Succession”, não são bons exemplos de empresários defensores da democracia e do estado de direito. Mas a citação “en passant” no seriado explicita a terrível sensação, também expressada por Bracher, de que o Brasil passou a ser não contestado, mas ignorado e desprezado pela comunidade internacional.
A esta altura do avançado descredenciamento brasileiro no cenário mundial seria útil que empresários, tanto quanto Bracher, entrassem no coro dos que defendem a democracia, o estado de direito e o real engajamento do país em pautas globais do século 21, como a ambiental e a da responsabilidade social. E que passassem a rechaçar firmemente, como outros setores da sociedade, ameaças veladas ou explícitas de ruptura institucional.
Infelizmente, durante a pandemia, a reação do empresariado, com poucas e honrosas exceções, tem sido omissa. Houve valorosas contribuições de empresas, pequenas e grandes, para atenuar os problemas sociais decorrentes da pandemia e do desemprego. Faltou, porém, uma ação institucional, de grupos empresariais e associações de classe, para ajudar a grande mídia e a sociedade em sua ação desesperada para contestar decisões negacionistas equivocadas do governo e do presidente da República: desestímulo ao uso de máscaras, incentivo a aglomerações, defesa da imunidade de rebanho e da cloroquina, rejeição a vacinas e outras maluquices que mancharam a imagem brasileira pelo mundo.
A história recente traz lições importantes sobre esse tema. Em 3 de agosto de 1977, em plena ditadura militar, o empresário e então presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, José Papa Junior, foi aplaudido após elogiar o regime em discurso para 2 mil pessoas, a maioria empresários, no Jockey Clube de São Paulo.
Meses antes, Papa Junior havia enviado telegrama ao então presidente da República, general Ernesto Geisel, parabenizando-o pelo “Pacote de Abril”, aquele que fechou o Congresso e criou a figura dos senadores biônicos, escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados das assembleias estaduais e por delegados das câmaras municipais. O objetivo do pacote era claramente o de garantir à Arena, partido do governo, o controle do Congresso após as eleições previstas para 1978, o que de outra forma parecia impossível depois de fragorosa derrota eleitoral sofrida pelo partido oficial quatro anos antes.
Laerte Setúbal Filho (1926-2015), então diretor da Duratex e da Fiesp, ficou furioso com aquele apoio ao pacote antidemocrático manifestado no evento do Jockey. E criticou seus pares. Disse que os empresários estavam satisfeitos e acomodados, porque o sistema lhes proporcionava uma série de regalias, como a proibição de greves de trabalhadores.
A fala de Setúbal Filho era um “trailer” do movimento que seria lançado um ano depois, liderado por Antônio Ermírio de Moraes e mais sete grandes empresários [Cláudio Bardella, Jorge Gerdau, José Mindlin, Laerte Setúbal Filho, Paulo Vellinho, Paulo Villares e Severo Gomes], pedindo a redemocratização do país.
No contexto do regime ditatorial que torturava e matava opositores, o “Manifesto dos Oito”, como foi chamado, era atitude de extrema coragem. Marcava o fim de um longo período de omissão/apoio da classe empresarial em relação ao regime ditatorial. O empresariado era majoritariamente democrático. Naquele momento de 1978, porém, decidiu que não bastava ser democrático, precisava dizer que era, com todas as letras.
Se o tema é imagem do Brasil, vale relembrar uma antiga anedota contada pelo escritor e poeta paraibano Ariano Suassuna (1927-2014). Um belo dia, o presidente do Brasil foi à Europa e lá decidiu fazer uma viagem de trem da Espanha para a França. No mesmo vagão estavam Pablo Picasso e Igor Stravinsky.
Quando o trem chegou à fronteira da França, os três estavam sem documentos e foram detidos pelas autoridades. Picasso foi chamado e pediu para ser liberado, apresentando-se como o grande pintor espanhol. “Então prove”, disse o policial. Picasso pediu lápis e papel e desenhou rapidamente uma tourada. “Ah, é você mesmo, pode seguir”, afirmou o policial.
Em seguida, chamou outro detido, que disse ser o grande compositor russo Igor Stravinsky e, para provar sua identidade, riscou uma pauta com os primeiros acordes da Suite Petrushka. “Sim, você é o compositor, pode passar”, disse o policial.
Chamou então o que se dizia presidente do Brasil. “Como o senhor pode provar sua identidade?”, perguntou. O presidente se sentou numa cadeira, pensou uns dez minutos e concluiu: “Não me ocorre nada”. E o policial chamou imediatamente o assistente: “Tudo bem, pode liberar. É ele mesmo”.
Relembrando, antes que venham xingamentos, a anedota é de Ariano Suassuna, grande contador de “causos”, e se refere aos piores tempos da ditadura de 1964, quando a imagem do Brasil no exterior era péssima. Contavam-se muitas piadas de presidentes militares em rodas de amigos, já que era extremamente perigoso caçoar deles publicamente.
A citação passa meio despercebida para quem não presta atenção no inglês, porque a legenda em português traduz “Brazilian” por “tupiniquim”. Mas essa passagem ilustra, de forma quase subliminar, a triste e vergonhosa imagem adquirida pelo Brasil no exterior nos últimos três anos.
Discorrendo sobre esse tema em artigo (21/11/21) na “Folha de S.Paulo”, Candido Bracher, ex-presidente do Itaú Unibanco, observa que a imagem do Brasil foi cruelmente retratada em um vídeo em que o presidente Jair Bolsonaro “aparece perdido entre os líderes do G20, [em Roma, no mês passado], perambulando pelo salão sem encontrar outra forma de aliviar seu isolamento que não fazendo graça com garçons, que sorriam constrangidos”.
Os Roy, família ficcional retratada em “Succession”, não são bons exemplos de empresários defensores da democracia e do estado de direito. Mas a citação “en passant” no seriado explicita a terrível sensação, também expressada por Bracher, de que o Brasil passou a ser não contestado, mas ignorado e desprezado pela comunidade internacional.
A esta altura do avançado descredenciamento brasileiro no cenário mundial seria útil que empresários, tanto quanto Bracher, entrassem no coro dos que defendem a democracia, o estado de direito e o real engajamento do país em pautas globais do século 21, como a ambiental e a da responsabilidade social. E que passassem a rechaçar firmemente, como outros setores da sociedade, ameaças veladas ou explícitas de ruptura institucional.
Infelizmente, durante a pandemia, a reação do empresariado, com poucas e honrosas exceções, tem sido omissa. Houve valorosas contribuições de empresas, pequenas e grandes, para atenuar os problemas sociais decorrentes da pandemia e do desemprego. Faltou, porém, uma ação institucional, de grupos empresariais e associações de classe, para ajudar a grande mídia e a sociedade em sua ação desesperada para contestar decisões negacionistas equivocadas do governo e do presidente da República: desestímulo ao uso de máscaras, incentivo a aglomerações, defesa da imunidade de rebanho e da cloroquina, rejeição a vacinas e outras maluquices que mancharam a imagem brasileira pelo mundo.
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A história recente traz lições importantes sobre esse tema. Em 3 de agosto de 1977, em plena ditadura militar, o empresário e então presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, José Papa Junior, foi aplaudido após elogiar o regime em discurso para 2 mil pessoas, a maioria empresários, no Jockey Clube de São Paulo.
Meses antes, Papa Junior havia enviado telegrama ao então presidente da República, general Ernesto Geisel, parabenizando-o pelo “Pacote de Abril”, aquele que fechou o Congresso e criou a figura dos senadores biônicos, escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados das assembleias estaduais e por delegados das câmaras municipais. O objetivo do pacote era claramente o de garantir à Arena, partido do governo, o controle do Congresso após as eleições previstas para 1978, o que de outra forma parecia impossível depois de fragorosa derrota eleitoral sofrida pelo partido oficial quatro anos antes.
Laerte Setúbal Filho (1926-2015), então diretor da Duratex e da Fiesp, ficou furioso com aquele apoio ao pacote antidemocrático manifestado no evento do Jockey. E criticou seus pares. Disse que os empresários estavam satisfeitos e acomodados, porque o sistema lhes proporcionava uma série de regalias, como a proibição de greves de trabalhadores.
A fala de Setúbal Filho era um “trailer” do movimento que seria lançado um ano depois, liderado por Antônio Ermírio de Moraes e mais sete grandes empresários [Cláudio Bardella, Jorge Gerdau, José Mindlin, Laerte Setúbal Filho, Paulo Vellinho, Paulo Villares e Severo Gomes], pedindo a redemocratização do país.
No contexto do regime ditatorial que torturava e matava opositores, o “Manifesto dos Oito”, como foi chamado, era atitude de extrema coragem. Marcava o fim de um longo período de omissão/apoio da classe empresarial em relação ao regime ditatorial. O empresariado era majoritariamente democrático. Naquele momento de 1978, porém, decidiu que não bastava ser democrático, precisava dizer que era, com todas as letras.
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Se o tema é imagem do Brasil, vale relembrar uma antiga anedota contada pelo escritor e poeta paraibano Ariano Suassuna (1927-2014). Um belo dia, o presidente do Brasil foi à Europa e lá decidiu fazer uma viagem de trem da Espanha para a França. No mesmo vagão estavam Pablo Picasso e Igor Stravinsky.
Quando o trem chegou à fronteira da França, os três estavam sem documentos e foram detidos pelas autoridades. Picasso foi chamado e pediu para ser liberado, apresentando-se como o grande pintor espanhol. “Então prove”, disse o policial. Picasso pediu lápis e papel e desenhou rapidamente uma tourada. “Ah, é você mesmo, pode seguir”, afirmou o policial.
Em seguida, chamou outro detido, que disse ser o grande compositor russo Igor Stravinsky e, para provar sua identidade, riscou uma pauta com os primeiros acordes da Suite Petrushka. “Sim, você é o compositor, pode passar”, disse o policial.
Chamou então o que se dizia presidente do Brasil. “Como o senhor pode provar sua identidade?”, perguntou. O presidente se sentou numa cadeira, pensou uns dez minutos e concluiu: “Não me ocorre nada”. E o policial chamou imediatamente o assistente: “Tudo bem, pode liberar. É ele mesmo”.
Relembrando, antes que venham xingamentos, a anedota é de Ariano Suassuna, grande contador de “causos”, e se refere aos piores tempos da ditadura de 1964, quando a imagem do Brasil no exterior era péssima. Contavam-se muitas piadas de presidentes militares em rodas de amigos, já que era extremamente perigoso caçoar deles publicamente.
Que desculpa será oferecida desta vez para se votar em Bolsonaro
Bolsonaro espera que cada brasileiro bolsonarista cumpra com o seu dever de votar nele, mesmo que insatisfeito com o governo. Se isso acontecer, grandes serão suas chances de disputar contra Lula o segundo turno da eleição do ano que está por chegar.
O autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, que hoje renega o título de “guru” da primeira família presidencial brasileira, escreveu que votará em Bolsonaro, embora frustrado. Ao seu juízo, o ex-capitão fracassou no combate ao comunismo.
O fantasma do comunismo caiu como uma bênção do céu para os militares que desde 1954 queriam abolir a democracia, o que só conseguiram 10 anos depois. O mundo vivia o período da Guerra Fria, Estados Unidos x União Soviética, capitalismo x comunismo.
A União Soviética dissolveu-se exatamente há 30 anos. Cuba e Coréia do Norte não são exemplos de comunismo que meta medo em ninguém. Sob o tacão do Partido Comunista, a China tornou-se uma fulgurante vitrine do capitalismo sem máscara de democracia.
Quem sequer leu um livro, nem mesmo as memórias do torturador Brilhante Ulstra, não é um anticomunista a ser levado a sério. Bolsonaro, em 2002, votou em Lula, acusado de ser comunista, e quis fazer de Aldo Rebelo, do PC do B, ministro da Defesa.
Anos antes, planejara atentados terroristas a quartéis imaginando arrancar melhores salários para a soldadesca. Afastado do Exército por insubordinação, ingressou na política para sobreviver e virou um sindicalista militar, vivandeira de tropas. Nunca passou disso.
Não lhe cobrem ideias, coerência ideológica, fidelidade a partidos, porque em momento algum de sua vida ele as teve, nem sabe do que se trata. Como um reles batedor de carteiras, aproveitou a oportunidade que o destino lhe deu para eleger-se presidente.
Muitos dos que lhe deram o voto ainda dizem que à época era uma escolha difícil entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT). Ou então que simplesmente acreditaram que ele não poderia vir a ser o mal que se revelou. Quem não sabia que seria assim? Faça o favor!
Há limite para tudo, inclusive a ignorância. Uma vez que hoje não dá mais para dizer que não sabe quem é Bolsonaro, resta ver que desculpa será usada para votar nele de novo. Os únicos dispensados de pedir desculpas são os à sua imagem e semelhança.
Ricardo Noblat
O autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, que hoje renega o título de “guru” da primeira família presidencial brasileira, escreveu que votará em Bolsonaro, embora frustrado. Ao seu juízo, o ex-capitão fracassou no combate ao comunismo.
O fantasma do comunismo caiu como uma bênção do céu para os militares que desde 1954 queriam abolir a democracia, o que só conseguiram 10 anos depois. O mundo vivia o período da Guerra Fria, Estados Unidos x União Soviética, capitalismo x comunismo.
A União Soviética dissolveu-se exatamente há 30 anos. Cuba e Coréia do Norte não são exemplos de comunismo que meta medo em ninguém. Sob o tacão do Partido Comunista, a China tornou-se uma fulgurante vitrine do capitalismo sem máscara de democracia.
Quem sequer leu um livro, nem mesmo as memórias do torturador Brilhante Ulstra, não é um anticomunista a ser levado a sério. Bolsonaro, em 2002, votou em Lula, acusado de ser comunista, e quis fazer de Aldo Rebelo, do PC do B, ministro da Defesa.
Anos antes, planejara atentados terroristas a quartéis imaginando arrancar melhores salários para a soldadesca. Afastado do Exército por insubordinação, ingressou na política para sobreviver e virou um sindicalista militar, vivandeira de tropas. Nunca passou disso.
Não lhe cobrem ideias, coerência ideológica, fidelidade a partidos, porque em momento algum de sua vida ele as teve, nem sabe do que se trata. Como um reles batedor de carteiras, aproveitou a oportunidade que o destino lhe deu para eleger-se presidente.
Muitos dos que lhe deram o voto ainda dizem que à época era uma escolha difícil entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT). Ou então que simplesmente acreditaram que ele não poderia vir a ser o mal que se revelou. Quem não sabia que seria assim? Faça o favor!
Há limite para tudo, inclusive a ignorância. Uma vez que hoje não dá mais para dizer que não sabe quem é Bolsonaro, resta ver que desculpa será usada para votar nele de novo. Os únicos dispensados de pedir desculpas são os à sua imagem e semelhança.
Ricardo Noblat
O que Bolsonaro ganha com o caos?
Há dois dias, no nosso quadro diário na CBN, Rodrigo Bocardi me pergunta: o que Jair Bolsonaro ganha com o caos que promove na vacinação, ou ao sair de férias pela segunda semana consecutiva enquanto a Bahia se afoga em chuvas?
A pergunta diz respeito à lógica eleitoral mais básica, estratégica mesmo. Pesquisas, conversas com aliados, uma passada rápida nas redes sociais, qualquer termômetro poderia mostrar ao capitão que a balbúrdia que ele fomenta em seu próprio governo, dia após dia, ano a ano, só acaba por minar suas próprias chances eleitorais. Pelo menos um substrato positivo em tanto retrocesso, diga-se.
O Brasil tem adesão histórica à vacinação, que se confirmou na pandemia de Covid-19. Os ataques nonsense perpetrados pelo presidente às vacinas não levaram a que as pessoas deixassem de se vacinar.
Só a vacinação, como diz até seu ministro da Economia, Paulo Guedes, permitirá que se inicie alguma tentativa de recuperação econômica — ademais profundamente comprometida pelas outras barbeiragens feitas pelo governo, como a implosão da responsabilidade fiscal.
Ainda assim, a verborragia de Bolsonaro contra a vacina segue a todo vapor, agora impedindo a imunização de crianças, chegando ao absurdo de usar a própria filha de 11 anos em seu discurso negacionista, negando a ela com orgulho a oportunidade de ser protegida contra o vírus.
De novo: o que ele ganha com isso? A resposta é: nada. Mas parece ser da sua natureza, algo que nenhum cálculo eleitoral é capaz de conter.
Como não se emenda e não se toca, Bolsonaro chegará a 2022 como essa bomba-relógio que, a despeito de todo o legado, tentará de tudo para se reeleger. Espera fidelizar os pouco mais de 20% que, as pesquisas mostram, seguem fiéis a ele — a ponto de impulsionar uma hashtag chamando de “orgulho do Brasil” alguém cuja obra, apenas no período entre Natal e Ano-Novo, se resume a andar de jet ski enquanto milhares de cidadãos por ele governados não têm casa para onde voltar.
Para sair dos já convertidos e chegar a um patamar que lhe garanta a passagem ao segundo turno, salve-se quem puder. Por isso não adianta Paulo Guedes mandar mensagens ao chefe e aos colegas clamando por algum freio de gastos num momento em que a pressão por reajustes de servidores tende a chegar ao nível máximo. Bolsonaro já deixou claro, entre uma folga e outra, que, por ele, concederia aumento a todas as categorias do funcionalismo. Então, o ministro que se prepare, porque a comporta vai de fato estourar.
Não há surpresa no comportamento do presidente, embora ele sempre esteja subindo um degrau em termos de atitudes incompatíveis com o cargo. Daí por que aqueles que, como a senadora Simone Tebet, dizem que jamais seria possível imaginar governo tão ruim devem fazer uma reflexão à luz da História desse personagem que o Brasil achou por bem eleger em 2018.
Em sua extensa carreira como deputado, depois de uma curta e indigna passagem como militar, Bolsonaro nunca fez questão de esconder o que era: um representante dos interesses corporativistas e do reacionarismo mais explícito, avesso às questões de gestão pública, a não ser aquelas ligadas aos grupos de interesse que ele representa (fabricantes de armas, latifundiários, garimpeiros, madeireiros).
O interesse público nunca foi pauta do parlamentar Bolsonaro, que envidou todos os esforços apenas em suas eleições, nas dos filhos e até na da mulher. Construiu vasto patrimônio à custa desses mandatos.
Eleito afrontando a lógica, a ciência, o decoro do cargo e o bom senso, Bolsonaro deve achar que se reelegerá assim — e segue. Se ganhará algo com isso, cabe ao eleitor responder no ano que vem.
A pergunta diz respeito à lógica eleitoral mais básica, estratégica mesmo. Pesquisas, conversas com aliados, uma passada rápida nas redes sociais, qualquer termômetro poderia mostrar ao capitão que a balbúrdia que ele fomenta em seu próprio governo, dia após dia, ano a ano, só acaba por minar suas próprias chances eleitorais. Pelo menos um substrato positivo em tanto retrocesso, diga-se.
O Brasil tem adesão histórica à vacinação, que se confirmou na pandemia de Covid-19. Os ataques nonsense perpetrados pelo presidente às vacinas não levaram a que as pessoas deixassem de se vacinar.
Só a vacinação, como diz até seu ministro da Economia, Paulo Guedes, permitirá que se inicie alguma tentativa de recuperação econômica — ademais profundamente comprometida pelas outras barbeiragens feitas pelo governo, como a implosão da responsabilidade fiscal.
Ainda assim, a verborragia de Bolsonaro contra a vacina segue a todo vapor, agora impedindo a imunização de crianças, chegando ao absurdo de usar a própria filha de 11 anos em seu discurso negacionista, negando a ela com orgulho a oportunidade de ser protegida contra o vírus.
De novo: o que ele ganha com isso? A resposta é: nada. Mas parece ser da sua natureza, algo que nenhum cálculo eleitoral é capaz de conter.
Como não se emenda e não se toca, Bolsonaro chegará a 2022 como essa bomba-relógio que, a despeito de todo o legado, tentará de tudo para se reeleger. Espera fidelizar os pouco mais de 20% que, as pesquisas mostram, seguem fiéis a ele — a ponto de impulsionar uma hashtag chamando de “orgulho do Brasil” alguém cuja obra, apenas no período entre Natal e Ano-Novo, se resume a andar de jet ski enquanto milhares de cidadãos por ele governados não têm casa para onde voltar.
Para sair dos já convertidos e chegar a um patamar que lhe garanta a passagem ao segundo turno, salve-se quem puder. Por isso não adianta Paulo Guedes mandar mensagens ao chefe e aos colegas clamando por algum freio de gastos num momento em que a pressão por reajustes de servidores tende a chegar ao nível máximo. Bolsonaro já deixou claro, entre uma folga e outra, que, por ele, concederia aumento a todas as categorias do funcionalismo. Então, o ministro que se prepare, porque a comporta vai de fato estourar.
Não há surpresa no comportamento do presidente, embora ele sempre esteja subindo um degrau em termos de atitudes incompatíveis com o cargo. Daí por que aqueles que, como a senadora Simone Tebet, dizem que jamais seria possível imaginar governo tão ruim devem fazer uma reflexão à luz da História desse personagem que o Brasil achou por bem eleger em 2018.
Em sua extensa carreira como deputado, depois de uma curta e indigna passagem como militar, Bolsonaro nunca fez questão de esconder o que era: um representante dos interesses corporativistas e do reacionarismo mais explícito, avesso às questões de gestão pública, a não ser aquelas ligadas aos grupos de interesse que ele representa (fabricantes de armas, latifundiários, garimpeiros, madeireiros).
O interesse público nunca foi pauta do parlamentar Bolsonaro, que envidou todos os esforços apenas em suas eleições, nas dos filhos e até na da mulher. Construiu vasto patrimônio à custa desses mandatos.
Eleito afrontando a lógica, a ciência, o decoro do cargo e o bom senso, Bolsonaro deve achar que se reelegerá assim — e segue. Se ganhará algo com isso, cabe ao eleitor responder no ano que vem.
Previsões para 2022
A criatura pode ser a mais racional da face da terra. A mais inteligente, analisada e crítica. Quando se aproxima o 31 de dezembro, são raras as que resistem conferir as previsões para o ano seguinte. Agora que estamos a reviver o obscurantismo da Idade Média, mais do que nunca, precisamos consultar divindades e seres do outro mundo. Que nos salvem os bruxos, magos, astrólogos, ciganas, cartomantes, médiuns e correlatos.
Sempre foi assim. Ansiamos por uma interpretação do amanhã e até pagamos por ela como quem busca informações privilegiadas numa concorrência. Traímos o presente com o futuro, que é totalmente subjetivo. Não basta dominarmos o aqui e o agora, este mundo tridimensional, também queremos ter o controle dos mistérios do mundo invisível.
Ter acesso a previsões é um desejo que vem desde que o globo começou a girar. Quando o homo sapiens se entendeu por gente, passou a achar que o seu “kit existência” dava direito a receber os conselhos dos oráculos. Assim, foi das cavernas ao Império Romano, passando pelos feudos da Idade Média, até os reis e rainhas shakespeareanos. Segue como leitor da sorte até hoje. O humano é o único animal que curte adivinhações. “Mistérios sempre há de pintar por aí”, arremata o cantor Gilberto Gil.
Esse gostar das coisas místicas e de querer entender os enigmas seduz a todos e a todas, indistintamente. Até os mais recatados intelectuais. Por falar nisso, logo me vêm à cabeça a escritora Clarice Lispector. Todo fã sabe que ela era chegada a um mistério. Tanto que foi convidada, e compareceu, ao I Congresso de Bruxaria em Bogotá, em 1975. Os organizadores do evento entendiam que algumas de suas obras tinham uma proposta mística, uma simbologia secreta.
Na condição de devoto, eu reconheço que a papisa da literatura brasileira era supersticiosa. Tanto que, na década de 1970, ela ia com frequência a uma cartomante, no bairro do Méier, Rio. Clarice não dava um passo, não fazia uma viagem, sem antes receber as orientações místicas. Não sei se é verdade, mas vou repassar esta fofoca pelo preço que comprei: o disse-que-disse dos meios literários dá conta de que a Lispector, quando ia consultar os arcanos, levava, consigo, um casal de amigos, os também escritores Afonso Romano de Sant’anna e Marina Colasanti. Está provado, pois, a boa literatura combina com uma certa magia.
Mas, voltando ao assunto. Estamos fechando o ano e é natural que se queira saber previsões. Há quem busque, até, indicações do dia e da hora ideais para comprar uma geladeira nova, atravessar a rua ou fazer as unhas. Programas de televisão viram campeões de audiência quando abrem espaço para astrólogos anteciparem a vida das celebridades. Outros, ainda, concorrem nas predições de catástrofes. Para 2022, que juntará no mesmo exercício os efeitos da covid-19 com as eleições presidenciais, pergunto: até quando durará nosso sofrimento?
Pandemia e eleição são motivos de sobra para se roer unhas. Vivemos dias de muita incerteza, que nos causam desde a mais simples apreensão ao pânico desorganizador e generalizado. É compreensível estarmos amedrontados, afobados, irritados, até histéricos. Qualquer coisa que se diga sobre o que há de vir, nessa situação desfavorável, já é um ganho. Saber o que nos espera, já nos prepara para os enfrentamentos ou para diminuir as ansiedades.
De minha parte, já consultei os astros, para ver se as previsões se encaixam nas minhas expectativas. Quer saber o que eles me disseram? “No próximo ano, o brasileiro precisa escolher um presidente da República que defenda e respeite o povo. Tem que fazer como os chilenos”. No mais, Feliz Ano Novo!
Cícero Belmar
Sempre foi assim. Ansiamos por uma interpretação do amanhã e até pagamos por ela como quem busca informações privilegiadas numa concorrência. Traímos o presente com o futuro, que é totalmente subjetivo. Não basta dominarmos o aqui e o agora, este mundo tridimensional, também queremos ter o controle dos mistérios do mundo invisível.
Ter acesso a previsões é um desejo que vem desde que o globo começou a girar. Quando o homo sapiens se entendeu por gente, passou a achar que o seu “kit existência” dava direito a receber os conselhos dos oráculos. Assim, foi das cavernas ao Império Romano, passando pelos feudos da Idade Média, até os reis e rainhas shakespeareanos. Segue como leitor da sorte até hoje. O humano é o único animal que curte adivinhações. “Mistérios sempre há de pintar por aí”, arremata o cantor Gilberto Gil.
Esse gostar das coisas místicas e de querer entender os enigmas seduz a todos e a todas, indistintamente. Até os mais recatados intelectuais. Por falar nisso, logo me vêm à cabeça a escritora Clarice Lispector. Todo fã sabe que ela era chegada a um mistério. Tanto que foi convidada, e compareceu, ao I Congresso de Bruxaria em Bogotá, em 1975. Os organizadores do evento entendiam que algumas de suas obras tinham uma proposta mística, uma simbologia secreta.
Na condição de devoto, eu reconheço que a papisa da literatura brasileira era supersticiosa. Tanto que, na década de 1970, ela ia com frequência a uma cartomante, no bairro do Méier, Rio. Clarice não dava um passo, não fazia uma viagem, sem antes receber as orientações místicas. Não sei se é verdade, mas vou repassar esta fofoca pelo preço que comprei: o disse-que-disse dos meios literários dá conta de que a Lispector, quando ia consultar os arcanos, levava, consigo, um casal de amigos, os também escritores Afonso Romano de Sant’anna e Marina Colasanti. Está provado, pois, a boa literatura combina com uma certa magia.
Mas, voltando ao assunto. Estamos fechando o ano e é natural que se queira saber previsões. Há quem busque, até, indicações do dia e da hora ideais para comprar uma geladeira nova, atravessar a rua ou fazer as unhas. Programas de televisão viram campeões de audiência quando abrem espaço para astrólogos anteciparem a vida das celebridades. Outros, ainda, concorrem nas predições de catástrofes. Para 2022, que juntará no mesmo exercício os efeitos da covid-19 com as eleições presidenciais, pergunto: até quando durará nosso sofrimento?
Pandemia e eleição são motivos de sobra para se roer unhas. Vivemos dias de muita incerteza, que nos causam desde a mais simples apreensão ao pânico desorganizador e generalizado. É compreensível estarmos amedrontados, afobados, irritados, até histéricos. Qualquer coisa que se diga sobre o que há de vir, nessa situação desfavorável, já é um ganho. Saber o que nos espera, já nos prepara para os enfrentamentos ou para diminuir as ansiedades.
De minha parte, já consultei os astros, para ver se as previsões se encaixam nas minhas expectativas. Quer saber o que eles me disseram? “No próximo ano, o brasileiro precisa escolher um presidente da República que defenda e respeite o povo. Tem que fazer como os chilenos”. No mais, Feliz Ano Novo!
Cícero Belmar
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