Em fevereiro, descobri que meus óculos já não estavam dando conta. Houve uma bela safra de insetos, racionamento de água e nuvens. Derramei cinco vezes açúcar na mesa, o suficiente para abastecer o açucareiro – pelos meses restantes, adocei o ano da toalha. Era um presságio de doçura para a chegada de Bruno, dias depois.
No começo de março, a quina da cama me roubou uma unha. Descasquei algumas bananas, passei manteiga no pão. Mais para o fim do mês, antes de voltar à capital, um pulo no litoral. Revi o mar, sempre bom rever o mar: molhei os pés, salguei o corpo, apanhei das ondas, me deitei na areia e, por alguns minutos, esqueci a pandemia.
Em abril, veio a vingança: a perda de um grande amigo para a covid. E mês mais não houve.
Em maio, ainda o choro e zero de conformidade. Escovei os dentes, fiz (pouco) a barba, temperei a salada, passei café toda tarde, liguei para alguns amigos, tentativas de fazer a vida seguir normal. E uma notificação de multa por furar o rodízio. O vento de maio derrubou as folhas do plátano.
Em junho, fiz uma caipirinha de morango que fez subir meu conceito em casa. Na primeira saída à rua que não fosse para ir à farmácia ou ao supermercado, um cachorro fez festinha e me seguiu por oito quarteirões. Uma alegria: chegaram em casa os contos completos do Cortázar. Motivo para não achar o confinamento tão ruim assim.
Julho trouxe frio e uma dor de dente suportável, que, misteriosamente, foi como veio. O limoeiro carregou. Houve uma gigantesca teia de aranha no jardim sustentando uma aranha com muitas pernas e pouca simpatia. Fui instado pela família a sumir com aquele bicho dali. Quando criei coragem, dei com uma teia rasgada e nada de aranha – um pássaro, um gato ou uma tempestade de granizo haviam feito o serviço por mim. Posso jurar que, ao menos neste ano, sou inocente. Não se pode dizer o mesmo das estrelas, que andaram muito cintilantes e exibidas.
Em agosto, eu e Beatriz fomos vacinados. Viva o SUS, viva a vida e esse sol. Ao contrário do meu amigo, consegui escapar da incompetência e descaso desse governo criminoso. Obrigado, mas não a vocês.
Setembro chegou com meu novo livro e trouxe de volta a chuva, recebida com festa, pitanga e jabuticaba. Perdi três quilos, disse a balança. Alguns balões imensos, coloridos, apareceram no céu para distrair a vida. Os noticiários se esforçaram ao máximo em trazer más notícias. Muitos gatos visitantes no quintal, no telhado, até um todo branco refestelado na minha rede. O jeito foi trabalhar sentado à mesa, como as pessoas normais costumam fazer.
Em outubro, os 60 chegaram, trazendo algum susto e incredulidade. Recebi abraços à distância, que me deixaram feliz. As folhas renasceram no plátano. Mandei a diabetes às favas e chupei um sorvete de casquinha. De vez em quando, um choro ao lembrar do amigo. Andei 10 km por dia, não em ritmo de atleta, porque atleta não sou e é preciso prestar atenção. Maria cortou meu cabelo e ficou meio engraçado.
Novembro ressuscitou as maritacas, que resolveram pôr em dia, aos gritos, as conversas adiadas. A goteira surgiu. O flamboyant floriu. O carro quebrou. A luz faltou. O remédio sumiu. Beatriz sorriu. Estou no lucro.
Veio dezembro e suas impetuosidades: esse calor, chuva de pingo grosso, luz que não deixa abrir o olho. Pedro pegou gripe, Maria dançou o Quebra-Nozes. O mês ainda não acabou. O ano ainda não acabou. Então, como fazer uma retrospectiva, se algo ou alguém pode aprontar alguma nos dias que faltam?
No mais, foi outro ano sem cometa. Também senti falta de uma viagem de trem, um futebolzinho na chuva, uma dança epilética, um beijo roubado – não vieram, muito pelo motivo já citado em outubro.
O principal: sobrevivemos. Estamos aqui. Isso merece um “Al di la” cantado com sentimento e um belo gole de cerveja. A você, meu amigo Alexandre Bonani.
Cássio Zanatta
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