A criatura pode ser a mais racional da face da terra. A mais inteligente, analisada e crítica. Quando se aproxima o 31 de dezembro, são raras as que resistem conferir as previsões para o ano seguinte. Agora que estamos a reviver o obscurantismo da Idade Média, mais do que nunca, precisamos consultar divindades e seres do outro mundo. Que nos salvem os bruxos, magos, astrólogos, ciganas, cartomantes, médiuns e correlatos.
Sempre foi assim. Ansiamos por uma interpretação do amanhã e até pagamos por ela como quem busca informações privilegiadas numa concorrência. Traímos o presente com o futuro, que é totalmente subjetivo. Não basta dominarmos o aqui e o agora, este mundo tridimensional, também queremos ter o controle dos mistérios do mundo invisível.
Ter acesso a previsões é um desejo que vem desde que o globo começou a girar. Quando o homo sapiens se entendeu por gente, passou a achar que o seu “kit existência” dava direito a receber os conselhos dos oráculos. Assim, foi das cavernas ao Império Romano, passando pelos feudos da Idade Média, até os reis e rainhas shakespeareanos. Segue como leitor da sorte até hoje. O humano é o único animal que curte adivinhações. “Mistérios sempre há de pintar por aí”, arremata o cantor Gilberto Gil.
Esse gostar das coisas místicas e de querer entender os enigmas seduz a todos e a todas, indistintamente. Até os mais recatados intelectuais. Por falar nisso, logo me vêm à cabeça a escritora Clarice Lispector. Todo fã sabe que ela era chegada a um mistério. Tanto que foi convidada, e compareceu, ao I Congresso de Bruxaria em Bogotá, em 1975. Os organizadores do evento entendiam que algumas de suas obras tinham uma proposta mística, uma simbologia secreta.
Na condição de devoto, eu reconheço que a papisa da literatura brasileira era supersticiosa. Tanto que, na década de 1970, ela ia com frequência a uma cartomante, no bairro do Méier, Rio. Clarice não dava um passo, não fazia uma viagem, sem antes receber as orientações místicas. Não sei se é verdade, mas vou repassar esta fofoca pelo preço que comprei: o disse-que-disse dos meios literários dá conta de que a Lispector, quando ia consultar os arcanos, levava, consigo, um casal de amigos, os também escritores Afonso Romano de Sant’anna e Marina Colasanti. Está provado, pois, a boa literatura combina com uma certa magia.
Mas, voltando ao assunto. Estamos fechando o ano e é natural que se queira saber previsões. Há quem busque, até, indicações do dia e da hora ideais para comprar uma geladeira nova, atravessar a rua ou fazer as unhas. Programas de televisão viram campeões de audiência quando abrem espaço para astrólogos anteciparem a vida das celebridades. Outros, ainda, concorrem nas predições de catástrofes. Para 2022, que juntará no mesmo exercício os efeitos da covid-19 com as eleições presidenciais, pergunto: até quando durará nosso sofrimento?
Pandemia e eleição são motivos de sobra para se roer unhas. Vivemos dias de muita incerteza, que nos causam desde a mais simples apreensão ao pânico desorganizador e generalizado. É compreensível estarmos amedrontados, afobados, irritados, até histéricos. Qualquer coisa que se diga sobre o que há de vir, nessa situação desfavorável, já é um ganho. Saber o que nos espera, já nos prepara para os enfrentamentos ou para diminuir as ansiedades.
De minha parte, já consultei os astros, para ver se as previsões se encaixam nas minhas expectativas. Quer saber o que eles me disseram? “No próximo ano, o brasileiro precisa escolher um presidente da República que defenda e respeite o povo. Tem que fazer como os chilenos”. No mais, Feliz Ano Novo!
Cícero Belmar
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